Durante dois anos, Estados Unidos atuaram para manter o
mínimo do Haiti em U$1,75. População lutava por um salário de U$5,00
EUA fizeram lobby para manter povo haitiano na miséria
Entre 2008 e 2009, a embaixada americana do Haiti se reuniu
a portas fechadas com donos de fábricas
contratadas pelas marcas Levi’s, Hanes e Fruit of de Loom com o intuito de
bloquear o aumento de salários da indústria têxtil do Haiti – que são os mais
baixos do continente – segundo documentos do Departamento de Estado americano.
Os donos das fábricas se recusavam a pagar 62 centavos por
hora, o que equivale a 5 doláres por 8 horas de trabalho, conforme estabelecia
uma medida aprovada por unanimidade pelo Congresso haitiano em 2009.
Nos bastidores, porém, os donos de fábricas tiveram o apoio
vigoroso dos EUA, da Agência de Desenvolvimento Internacional (USAID) e da
embaixada americana, segundo documentos da embaixada entregues ao Haïti
Liberté, parceiro da Pública, por meio do grupo de transparência WikiLeaks.
Na época, o mínimo salarial diário era de 70 gourdes, ou 1
dólar e 75 centavos.
Os empresários afirmaram ao Congresso haitiano que estavam
dispostos a dar um aumento de 9 centavos, chegando a 31 centavos por hora de
trabalho – 100 gourdes diários -, para os trabalhadores que produzem camisas,
sutiãs e roupas íntimas para gigantes da industria têxtil americana, como as
marcas Dockers e Nautica.
Para resolver o problema entre as empresas e o Congresso, o
Departamento de Estado americano insistiu que o presidente haitiano René Préval
intervisse:
“Uma atuação mais engajada de Préval pode ser crítica para
resolver a questão do salário mínimo e os protestos pelo seu aumento – ou então, corremos o risco do ambiente
político fugir do controle”, avisou o embaixador americano Janet Sanderson em
junho de 2009.
Dois meses depois, Préval negociou um acordo com o Congresso
para estabelecer dois tipos de salários mínimos: um para a industria têxtil de
3,13 doláres por dia (125 gourdes) e outro para todas as outras indústrias e
setores comerciais, de 5 doláres por dia (200 gourdes).
Mas mesmo assim, a embaixada americana não ficou satisfeita.
O chefe da missão, David E. Lindwall, disse que um aumento para 5 doláres “não
leva em conta a realidade econômica”, e teria sido apenas uma medida
“populista” para apelar “às massas desempregadas e mal-pagas”.
Os defensores do mínimo haitiano insistem que era necessário
manter o passo com a inflação e aliviar o aumento do custo de vida.
O Haiti é o país mais pobre do continente, e o Programa
Mundial de Alimentos da ONU estima que 3,3 milhões de pessoas, um terço da
população, estejam em risco de passar fome.
Naquele mesmo ano de 2008, uma onda de protestos conhecidos
como “protestos do cloro” sacudiram o país – o nome era uma referência à dor no
estômago causada pela fome aguda, como se a pessoa tivesse ingerido cloro.
De acordo com estudo do Consórcio dos Direitos dos
Trabalhadores realizado em 2008, uma família da classe trabalhadora sustentada
por um único individuo e tendo dois dependentes precisaria de 550 gourdes
haitianos, cerca de 13 doláres e 75 centavos por dia, para manter um nível de
vida normal.
Segundo o assessor de imprensa da embaixada norte-americana
Jon Piechowski, “a política do Departamento de Estado é de não comentar
documentos com informações classificadas e condenar o vazamento ilegal dessas
informações”.
Ele afirmou ainda que “no Haiti, 80% da população está
desempregada, e 78% vive com menos de 1 dólar por dia – o governo americano
está trabalhando com o governo haitiano e outros parceiros internacionais para
aumentar a criação de empregos, apoiar o crescimento econômico e atrair
investimentos estrangeiros que sigam as normas da OIT (Organização
Internacional do Trabalho) e consigam alavancar a industria e a agricultura do
país”.
O interesse dos EUA: zonas-francas para têxteis no Haiti
Porém, durante um período de 20 meses, do começo de
fevereiro de 2008 a outubro de 2009, agentes da embaixada americana monitoraram
atentamente e informaram Washington sobre a questão dos salários.
Os telegramas afirmam que o novo mínimo tinha o apoio da
maior parte da comunidade de negócios do Haiti “com base em relatos de que o
mínimo na República Dominicana e na Nicarágua (países que competem no setor
têxtil) também vão aumentar”.
Mesmo assim, a proposta gerou uma oposição ferrenha dentre a
elite manufatureira haitiana, que Washington vinha apoiando com suporte
financeiro direto e acordos de livre comércio.
Em 2006, o congresso americano aprovou o plano Oportunidade
Hemisférica através do Incentivo à Parceria (HOPE, na sigla em inglês que
significa “esperança”). A lei permitiu incentivos fiscais para criar
zonas-francas de fábricas no Haiti – elas podem exportar para os EUA sem pagar
impostos.
Dois anos depois, o congresso dos EUA aprovou outra lei de
isenção de impostos, chamada HOPE II, e a USAID passou a fornecer assistência
técnica treinamento para ajudar as fábricas a expandir suas produções e
aproveitar ao máximo a nova legislação.
Os documentos brasileiros do WikiLeaks, publicados pela
Pública, demonstraram que empresas brasileiras estão fazendo lobby para
integrarem essa iniciativa – usando a mão-de-obra barata do Haiti e exportando
sem impostos para os EUA.
Os telegramas da embaixada haitiana afirmam que essa
iniciativa dos EUA estava em perigo por causa da proposta de aumento do salário
mínimo.
“Representantes da indústria têxtil, liderados pela
Associação da Indústria Haitiana (ADIH), se opuseram ao aumento de HTG 130 (US$
3,25) por dia no setor manufatureiro, afirmando que iria devastar a indústria e
ter um impacto negativo no projeto HOPE II” afirma um documento confidencial de
17 de junho de 2009 assinado pelo
conselheiro da embaixada Thomas C. Tighe.
Ironicamente, um relato confidencial assinado por Tighe uma
semana antes , no dia 10 de junho, observou que um estudo da Associação da
Indústria Haitiana havia concluído que “de modo geral, a média salarial para os
empregados do setor têxtil é HTG 173 (US$ 4,33)”, ou seja, apenas 67 centavos
menos do que o mínimo proposto no Congresso.
Mesmo assim, o estudo alertava que deveria haver oposição ao
aumento do mínimo porque “a atual estrutura de salários promove a produtividade
e serve como um elemento de competitividade na região”.
Tighe observa, no entanto, que “o salário mínimo para os
trabalhadores na Zona Franca na fronteira entre Haiti e República Dominicana é
de cerca de US$ 6,00”, um dólar a mis do que o projeto de lei no Congresso.
perda de 10.000 postos de trabalho”, o que significa mais de
um terço do total na época.
Tighe afirmou então que “estudos financiados pela Associação
da Indústria Haitiana e pela USAID sobre o impacto do aumento do salário mínimo
na indústria têxtil mostram que o aumento iria tornar o setor inviável
economicamente e consequentemente forçar o fechamento de fábricas.”
Apoiados por este estudo pago pela USAID, os donos de
fábricas fizeram lobby pesado contra o aumento, reunindo-se com o ex-presidente
Préval em diversas ocasiões e com mais de 40 membros do Parlamento e partidos
políticos, segundo os documentos do WikiLeaks.
Monitoramento
Os documentos diplomáticos procedentes do Haiti revelam como
a emabaixada americana monitarava o aumento de salário e se preocupava com os
impactos da batalha dos salários na política.
Tropas da ONU foram chamadas para reprimir protestos
estudantis, aumentando o sentimento contra a presença militar da ONU no Haiti.
Em 10 de agosto de 2009, trabalhadores da indústria têxtil,
estudantes e outros ativistas protestaram no Parque Industrial (SONAPI),
próximo ao aeroporto de Port-au-Prince.
A polícia prendeu dois estudantes, Guerchang Bastia e
Patrick Joseph, por “incitar” os trabalhadores.
Exigindo sua libertação, os protestantes marcharam até a
delegacia Delma 33, onde os policiais atiraram gás lacrimogêneo e os
protestantes revidaram atirando pedras.
No percurso do protesto, o pára-brisa do carro do
conselheiro da embaixada americana, Tighe, foi quebrado, e ele teve que se
abrigar na delegacia.
Depois, quando perguntado por jornalistas sobre o incidente
e a controvérsia do salário mínimo, Thige disse apenas: “É sempre a minoria que
causa desordem”.
Devido aos protestos vertiginosos de trabalhadores e
estudantes, os donos das fábricas e Washington venceram apenas parcialmente a
batalha dos salários, atrasando o aumento por um ano e mantendo o salário das
fábricas têxteis um pouco abaixo do restante.
Em outubro de 2010 a assembléia dos trabalhadores conseguiu
aumentar para 200 gourdes por dia de trabalho na indústria têxtil, enquanto em
todos os outros setores o salário foi para 250 gourdes por dia (cerca de 6
doláres e 25 centavos)