"Isso é um bicho", exclamou, espantado, um dos
repressores quando costuravam a mão de Olderico Campos Barreto, sem anestesia,
e ele não dava um gemido sequer...
Olderico (esq.) no local onde Lamarca e Zequinha foram mortos |
Um pouco antes, um grupo de agentes da ditadura do Rio de
Janeiro tinha assumido o interrogatório, tachando o pessoal de São Paulo de
“bunda-mole” porque não conseguiam arrancar de Olderico a informação sobre onde
Lamarca estava escondido. “Vamos ver se ele não fala”, disse um e meteu a boca
da pistola no ouvido de Olderico. “Aperta o dedo”, desafiou – ou foi “aperta o
gatilho?”, ele se pergunta ao contar o episódio 40 anos depois -, para o
espanto dos torturadores, assombrados com tamanho destemor. E um deles soltou o
“elogio”: “Isso é um bicho!”
Era o dia 28 de agosto de 1971. Olderico, então com 23 anos,
tinha sido ferido no ataque do grupo comandado pelo temido delegado Sérgio
Paranhos Fleury – chefe de torturadores e de grupo de extermínio da polícia
paulista – à casa do seu pai, o velho José Barreto, em Buriti Cristalino,
povoado do município de Brotas de Macaúbas, na Chapada Diamantina, a cerca de
600 quilômetros de Salvador. Fleury estava à procura do capitão do Exército que
virou guerrilheiro, Carlos Lamarca, que estava escondido no mato, a pouca
distância do povoado, em companhia do seu irmão mais velho Zequinha (José
Campos Barreto), então companheiro de militância no MR-8 (Movimento
Revolucionário 8 de Outubro, antes eles militaram na VPR – Vanguarda Popular
Revolucionária) e que se tornara também inimigo da ditadura ao liderar, em
1968, a famosa greve dos metalúrgicos de Osasco, em São Paulo.
Lamarca e Zequinha ouviram a fuzilaria no povoado, na casa
do velho José Barreto, e fugiram tentando escapar do cerco. Pelo mato, a pé,
fragilizados pela desnutrição, isolados dos moradores levados a vê-los como
terroristas, foram mortos poucos dias depois, no dia 17 de setembro, após uma
marcha heróica por aquela inóspita região do semi-árido. Já sem condições de
oferecer resistência, foram metralhados por um comando do Exército, sob a
chefia do então major Nilton Cerqueira, nas proximidades de Pintada, povoado do
município de Ipupiara, pertinho do limite com Brotas de Macaúbas. Estes
episódios estão no livro “Lamarca, o capitão da guerrilha”, de Emiliano José e
Oldack Miranda, que virou filme dirigido por Sérgio Rezende, e no documentário
“Do Buriti à Pintada – Lamarca e Zequinha na Bahia”, de Reizinho Pereira dos
Santos.
Relatou repetidas vezes, com paciência de missionário, estes
assombrosos acontecimentos
Olderico, agora com 63 anos, é a principal testemunha da
tenebrosa violência que se abateu sobre a família do patriarca José Barreto,
então com 65 anos, que sobreviveu a terríveis torturas. Veio a morrer em 1995.
Durante o ataque à sua casa morreram outro dos seus filhos, Otoniel (esboçou
uma temerária reação, seguida da tentativa desesperada de fuga, ao ouvir os
gritos do pai sob tortura), e o militante Luiz Antônio Santa Bárbara,
companheiro de Lamarca e Zequinha, que estava morando em sua casa.
Ao amanhecer do dia 28 de agosto de 1971, Olderico estava no
centro do furacão. Por um momento no desigual tiroteio, se viu frente a frente
com Fleury, mas teve a sorte de, ferido na mão e no rosto, tombar para dentro
de um dos cômodos da casa e sair da linha de fogo. Ele conta tentando entender
aqueles momentos de extrema aflição: os truculentos agentes de Fleury chutavam
e pisavam na sua mão direita, ferida à bala, e até hoje deformada.
Nos atos públicos e celebrações dos últimos dias 17 e 18,
realizados em Brotas de Macaúbas, Buriti e Pintada, para marcar os 40 anos do
assassinato de Lamarca e Zequinha, Olderico relatou repetidas vezes às dezenas
de visitantes, aos repórteres, fotógrafos e documentaristas, com paciência de
missionário, estes assombrosos acontecimentos, já bem conhecidos nos contornos
gerais, mas mesmo assim com lances emocionantes, especialmente quando relatados
por um tal protagonista. (Depois da prisão e uma temporada em São Paulo, ele decidiu
retornar à sua terra pensando em fazer alguma coisa em benefício dos seus
conterrâneos. Atualmente é gerente da Cooperativa Agro-mineral Sem Fronteiras
Ltda (CASEF) – Brotas se destaca na produção de cristais de quartzo – e um
cidadão participante da vida social e política da região, como se pode ver no
decorrer deste relato).
Guiados por suas indicações, sua memória e seu entendimento,
e entretidos pela atração dos detalhes, vimos o local onde os dois patriotas
tombaram, perto de Pintada – o destemido Zequinha ainda com forças para correr
e gritar “viva a revolução” e o capitão guerrilheiro já, de fato, tombado,
deitado no chão, as forças já quase completamente exauridas. Vimos onde os dois
corpos foram quebrados para serem conduzidos pendurados em paus, como carne e
ossos de animais, nos ombros dos repressores, e onde foram estendidos em forma
“de valete” – cabeça de um com pés do outro – e expostos à execração pública.
Visitamos a então casa da família Barreto em Buriti – o
imóvel está em reforma, foi doado ao Instituto Zequinha Barreto para virar um
centro de memória. Vimos o quarto onde foi colocado, ferido, junto aos corpos
do irmão Otoniel e de Santa Bárbara, Olderico fala do sangue dos três
escorrendo; vimos a porta de outro quarto, já nos fundos, por onde ele caiu
depois de atingido pelas balas, ficando fora da linha de fogo; o quintal de
onde partia a cerrada fuzilaria; a marca de uma bala no batente de uma janela.
Fala horrores dos agentes da ditadura comandados por Fleury, mas, ao mesmo tempo,
menciona com reverência o Exército brasileiro, assinalando que Zequinha serviu
nas Forças Armadas.
“Não é possível que esses homens não tenham direito à terra
e ao trabalho”
Ele nos mostrou a rota da tentativa de fuga do irmão Otoniel
e o ponto onde finalmente tombou, a uma centena de metros do quintal da casa.
Reproduzo de memória o sentido de suas palavras: “Aqui, junto desta cerca de
arame, ficou o corpo de Otoniel, desde cedinho quando ocorreu o ataque. Já eram
umas 10 horas e as aves de rapina começaram a bicar o corpo. Zé de Virgílio
(José Pereira de Oliveira, muito amigo de seu pai) viu que estavam comendo o
olho de meu irmão e não aguentou ver aquilo. Cobriu o corpo com um couro de boi
e foi pedir aos homens da repressão para evitar tamanha desumanidade”. Lembra
sempre da necessidade de resgatar a memória e a verdade do difícil período da
ditadura, enfatizando essa coisa terrível de serem tachados de terroristas os
que lutavam contra o regime militar, o terrorismo de Estado. Contou até uma
passagem engraçada: uma vez ele foi convidado por um amigo para um almoço em
sua casa e, ao chegar, o amigo o apresentou à esposa, anunciando se tratar do
“maior terrorista do Brasil” (o amigo desconhecia o sentido pejorativo do
termo, parecendo achar que “terrorista” era uma espécie de elogio). Deu seu
testemunho durante a missa celebrada em louvor aos mártires, no coreto de
Buriti, convidado pelo principal celebrante, Dom Frei Luiz Cappio, bispo da
Diocese de Barra. Ressaltou mais uma vez a luta do irmão Zequinha e a bela
pessoa humana que era o capitão Lamarca e aproveitou para pedir, como sempre
faz nas mais variadas oportunidades – dirigindo-se desta vez diretamente ao
prefeito de Brotas, Litercílio Júnior, do PT, que estava presente –, melhorias
para seu querido povo de Buriti Cristalino.
No ato público do dia
17, manhã de sábado, na praça central de Brotas de Macaúbas, Olderico foi
chamado a discursar entre as diversas autoridades e políticos que participaram
dos eventos em defesa da memória e da verdade. Falou novamente da importância
de se resgatar a verdadeira história, lembrou as privações de Lamarca no seu
precário esconderijo no mato, a sua vontade impossível de manter contato com os
camponeses, da vontade impossível de trabalhar fazendo farinha com os moradores
da região, falou da seca, da fome, do rádio através do qual o capitão escutava
as notícias dos lutadores brasileiros nas emissoras da China, da União
Soviética e da Albânia. E, mais uma vez, deu seu recado em favor dos
conterrâneos “para os companheiros do governo que estão aqui”. Pediu a
construção de estrada e outros melhoramentos para os mineiros. Bradou no seu
jeito humanitário: “Não é possível que esses homens não tenham direito à terra
e ao trabalho”.
“…jamais voltarão esses grupos que assassinam pessoas, que
assassinam seus adversários”
Transcrevo agora o breve discurso de Olderico, também na
praça principal de Brotas, na noite de 29 de julho deste ano, logo depois de
assistir ao lançamento nacional do documentário “Do Buriti à Pintada”, contendo
depoimentos de militantes políticos daquela época, moradores e familiares seus,
incluindo o pai José Barreto
Em nome da família Barreto, em nome da minha família, eu
queria agradecer a Reizinho e toda a equipe do filme na pessoa de Reizinho,
pelos momentos que nos propiciou e agradecer também por ter escolhido a praça
de Brotas de Macaúbas para lançar o filme. Normalmente as coisas ocorrem no
eixo Rio/São Paulo e a gente só fica sabendo depois. Então, queremos agradecer
este privilégio e agradecer a todos que contribuíram com o filme e a todos que
estão aqui. Queria dizer a vocês sobre o impacto que vi agora, me ocorreram as
mais diferentes sensações… o choro, arrepio, tudo… a emoção de ver e rever
pessoas como o meu pai, o resgate que foi um trabalho perfeito. Agradecemos a
(Litercílio) Júnior, o prefeito, que facilitou como administrador do município
todos os dados para esta comissão, esta equipe que produziu esse trabalho. Isso
é democracia, e nós acreditamos nela e acreditamos que o mundo será um dia
sempre melhor e jamais voltarão esses grupos que assassinam pessoas, que
assassinam seus adversários. Vamos trabalhar por um mundo melhor. Obrigado”.
Como comentou um amigo que conheci na viagem a Brotas de Macaúbas, Antônio dos
Santos Pinho, professor de História em Salvador, “Olderico fala com alma”.
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