Três cenários para Dilma
Trës cenários para o governo Dilma: um
cenário lulista, marcado pela radicalização do binômio crescimento com
inclusão social. Um cenário paloccista, dominado pela agenda de
estabilização macroeconômica. E um cenário de sarneízação, com o
esgarçamento da coalizão governante, crises, antecipação sucessória e
oposição extremada.
Antonio Lassance
Trabalhar com cenários futuros ainda é uma
boa maneira de organizar o que está por vir na forma de um leque que
cobre o que se quer ver acontecer, o que é possível ocorrer e o que se
quer evitar. No caso do governo Dilma, pelo menos trës cenários podem
ser vislumbrados.
O cenário ideal, ou de referência, pode ser apelidado de lulista, pois tem como traço marcante a continuidade e a radicalização (ou seja, o enraizamento e aprofundamento) das políticas públicas do governo Lula , sob o binômio crescimento com inclusão social. Seu emblema é a eliminação da miséria. Seu pressuposto é a continuidade do ciclo virtuoso que combina crescimento econômico em patamares acima da média dos últimos oito anos e a ampliação das políticas sociais universais e de equidade.
Um segundo cenário pode ser apelidado de paloccista, pois reproduziria a agenda que prevaleceu entre os anos de 2003 a 2005. Sua tônica seria o equilíbrio macroeconômico, com prioridade absoluta para o controle da inflação. Seus fundamentos seriam a manutenção da taxa de juros em patamares elevados e um rigoroso e contínuo ajuste fiscal, com corte de gastos e recordes de arrecadação tributária para a geração de superávits primários expressivos. Em paralelo, o governo dedicaria grande esforço a uma agenda permanente de reformas, várias delas tramitando de modo simultâneo: tributária (meramente simplificadora, sem mexer em sua estrutura regressiva), microeconômica, previdenciária, política, trabalhista e tantas outras possíveis e imagináveis, mas politicamente inviáveis.
Para o terceiro cenário, vamos usar como referência o governo Sarney. Como se sabe, foi um governo que chegou a contar com ampla maioria congressual, mas que se foi fragmentando. A erosão do capital político acumulado agravou-se com a instabilidade econômica. Num cenário sarneísta, o estrangulamento da sustentação política do governo inviabilizaria qualquer agenda (lulista ou paloccista) e o deixaria suscetível a crises permanentes, sem retaguarda para a sua defesa. Ao mesmo tempo, a oposição consolidaria seu viés extremista. Fortes sinais dessa possibilidade apareceram durante a campanha Serra: discurso agressivo e preconceituoso, combate sem tréguas e demonizador à pessoa da candidata (hoje presidenta) e formação de uma candidatura de oposição patrocinada e trabalhada meticulosamente pelas corporações midiáticas mais tradicionais - fenômeno que teima em reiterar-se a cada campanha eleitoral, desde 1989.
No primeiro cenário, a presidenta se valeria do caminho trilhado por Lula para consolidar um projeto político de dimensões ainda mais amplas. Como resultado, manteria bons níveis de aprovação popular, sustentação social e coesão de sua base política.
O segundo cenário retrocederia a uma situação que já se imaginava superada. O governo ficaria refém de uma agenda tímida, diante da expectativa de um salto adiante. O primeiro ano estaria reservado, assim como foi em 2003, à tarefa de arrumar a casa. Se descontextualizado da atual conjuntura, o fato tenderia a ser explorado, pela velha mídia e pela oposição, como uma contradição da imagem de céu de brigadeiro deixada por Lula. A popularidade do atual governo estaria em níveis distantes dos atingidos por Lula em seu último ano de mandato e mais próxima ao que esteve justamente entre 2003 e 2005.
O terceiro cenário resultaria da desagregação das forças que a duras penas foram reunidas em aliança para viabilizar a candidatura Dilma. O governo sofreria com uma baixa disciplina congressual, o que abortaria a possibilidade de implementar reformas importantes. Estaria obrigado a governar excessivamente por decreto, gerir sem inovar, tocar a máquina sem ousar grandes mudanças. Amargaria impopularidade e pouca vitalidade para a sua defesa na sociedade. Os partidos da base tentariam dissociar sua imagem da do governo, disputariam espaço a todo instante, para forçar reformas ministeriais, e se lançariam antecipadamente à sucessão.
Por sua vez, setores do PT encampariam um “sebastianismo” favorável à imperiosa necessidade da volta de Lula, enquanto PMDB e PSB acenariam com a possibilidade de candidaturas próprias (tal e qual na experiência do Governo Sarney, que foi solapado pela antecipação do debate sucessório e profusão de candidaturas egressas de partidos aliados). Trata-se de um quadro que não interessaria nem ao próprio Lula, pois levaria à erundinização do governo, desgastando, de roldão, a imagem do ex-presidente e do PT (tal e qual fizeram do governo Erundina, em 1989).
A rigor, cenários diferentes não são excludentes. Aliás, raramente o são. É difícil que ocorram em estado puro. É mais comum que despontem combinados, na verdade, engalfinhados, brigando um contra o outro.
Essa natureza instável e contraditória deixa o cenário que prevalece em um dado momento pronto para ser distorcido e engolido por seu reverso. A toda hora, se vê cada um deles tentando se firmar. Os que prevalecem são projetados também pelas circunstâncias. Não são objeto da vontade ou desenvoltura de um único ator político.
Lula teve que assumir um cenário paloccista entre 2003 e 2005, por conta da instabilidade econômica herdada do governo anterior, acirrada pelos temores insuflados na campanha de 2002. Da mesma forma, os temores atuais de que a economia está a um passo de fugir ao controle e de que a inflação voltou a ameaçar o sono dos brasileiros faz com que os médicos defensores do remédio amargo voltem a bater às portas do governo (a respeito, leia-se o artigo de Paulo Kliass, “Inflação: a mesma desculpa de sempre!”, na Carta Maior http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=4922 ).
Neste momento, os três cenários estão conflagrados, em franca disputa.
As dificuldades com o PMDB instilam o risco de o governo não contar com uma coalizão sólida no Congresso, o que impediria a presidenta de transformar seu poder de iniciativa (ancorado em suas prerrogativas) em poder de agenda (a aprovação congressual das matérias de seu interesse prioritário).
O cenário lulista tem como ponto prioritário a agenda social e desponta a cada passo que se dá em torno do plano de erradicação da miséria. Mas há ainda desafios que, se esquecidos, deixariam uma significativa agenda de mudanças na prateleira. É o caso da Consolidação das Leis Sociais e da regulamentação da Emenda 29 (que daria mais recursos à saúde, saindo da atual situação de subfinanciamento). Além disso, o PAC e a política de investimentos das estatais (Petrobras, com o pré-sal; Caixa Econômica, com o “Minha Casa, Minha Vida”; a política de crédito dos bancos públicos, entre outras), que dizem respeito à alavancagem econômica do País, carecem de uma perspectiva mais antenada com o longo prazo.
As reformas tributária, política, trabalhista e previdenciária são temas para debate. Nenhum deles projetou-se no debate eleitoral e os candidatos não os colocaram entre suas preferências. São temas mastodônticos, lentos demais por conta das inúmeras arestas federativas e jurídicas, por contrariar atores com poder de veto e contar com poucos estímulos diante da insegurança suscitada por suas mudanças.
A questão da regulação da mídia depende de uma clara demonstração de força do governo, que precisa certificar-se de que conseguirá aprovar no Congresso aquilo que pretende e segurar o “tranco” que levará se mexer no vespeiro que afeta um grande número de parlamentares - os que têm relações orgânicas com a atual configuração do sistema de concessões públicas de rádio e tv.
Consolidar um cenário favorável depende da contenção dos cenários adversos. Os primeiros cem dias são tradicionalmente o momento decisivo e definidor do que um governo pode vir a ser e de sua habilidade para tourear conflitos.
Para a presidenta Dilma, seus primeiros cem dias darão a embocadura de um governo que começou sem lua de mel, que carrega nos ombros a responsabilidade de colher o que Lula plantou e de realizar aquilo que o ex-presidente não teve tempo nem condições de concluir.
Em seu primeiro ano, um governo deve preocupar-se em fazer as coisas acontecerem, mas não pode descuidar de um requisito essencial: saber administrar as expectativas que levantou a seu respeito. A tendência é que se compare 2011 com 2010. O correto e justo, no entanto, seria comparar 2011 com 2003 - o primeiro ano de Lula com o primeiro de Dilma. A correção dessa expectativa é a primeira grande tendência que Dilma e sua equipe precisarão reverter, enquanto ainda há tempo.
É preciso lembrar que um governo, mesmo de continuidade, começa marcado por certa desaceleração, em função de um novo arranjo da coalizão governante, do assento de novos dirigentes, da realocação de sua burocracia, da redefinição de prioridades e do início de novos métodos de trabalho e de um padrão diverso de relacionamento, dentro e fora do governo. O avião pilotado por Lula pousou. O pilotado por Dilma terá necessariamente que fazer uma nova decolagem.
O cenário ideal, ou de referência, pode ser apelidado de lulista, pois tem como traço marcante a continuidade e a radicalização (ou seja, o enraizamento e aprofundamento) das políticas públicas do governo Lula , sob o binômio crescimento com inclusão social. Seu emblema é a eliminação da miséria. Seu pressuposto é a continuidade do ciclo virtuoso que combina crescimento econômico em patamares acima da média dos últimos oito anos e a ampliação das políticas sociais universais e de equidade.
Um segundo cenário pode ser apelidado de paloccista, pois reproduziria a agenda que prevaleceu entre os anos de 2003 a 2005. Sua tônica seria o equilíbrio macroeconômico, com prioridade absoluta para o controle da inflação. Seus fundamentos seriam a manutenção da taxa de juros em patamares elevados e um rigoroso e contínuo ajuste fiscal, com corte de gastos e recordes de arrecadação tributária para a geração de superávits primários expressivos. Em paralelo, o governo dedicaria grande esforço a uma agenda permanente de reformas, várias delas tramitando de modo simultâneo: tributária (meramente simplificadora, sem mexer em sua estrutura regressiva), microeconômica, previdenciária, política, trabalhista e tantas outras possíveis e imagináveis, mas politicamente inviáveis.
Para o terceiro cenário, vamos usar como referência o governo Sarney. Como se sabe, foi um governo que chegou a contar com ampla maioria congressual, mas que se foi fragmentando. A erosão do capital político acumulado agravou-se com a instabilidade econômica. Num cenário sarneísta, o estrangulamento da sustentação política do governo inviabilizaria qualquer agenda (lulista ou paloccista) e o deixaria suscetível a crises permanentes, sem retaguarda para a sua defesa. Ao mesmo tempo, a oposição consolidaria seu viés extremista. Fortes sinais dessa possibilidade apareceram durante a campanha Serra: discurso agressivo e preconceituoso, combate sem tréguas e demonizador à pessoa da candidata (hoje presidenta) e formação de uma candidatura de oposição patrocinada e trabalhada meticulosamente pelas corporações midiáticas mais tradicionais - fenômeno que teima em reiterar-se a cada campanha eleitoral, desde 1989.
No primeiro cenário, a presidenta se valeria do caminho trilhado por Lula para consolidar um projeto político de dimensões ainda mais amplas. Como resultado, manteria bons níveis de aprovação popular, sustentação social e coesão de sua base política.
O segundo cenário retrocederia a uma situação que já se imaginava superada. O governo ficaria refém de uma agenda tímida, diante da expectativa de um salto adiante. O primeiro ano estaria reservado, assim como foi em 2003, à tarefa de arrumar a casa. Se descontextualizado da atual conjuntura, o fato tenderia a ser explorado, pela velha mídia e pela oposição, como uma contradição da imagem de céu de brigadeiro deixada por Lula. A popularidade do atual governo estaria em níveis distantes dos atingidos por Lula em seu último ano de mandato e mais próxima ao que esteve justamente entre 2003 e 2005.
O terceiro cenário resultaria da desagregação das forças que a duras penas foram reunidas em aliança para viabilizar a candidatura Dilma. O governo sofreria com uma baixa disciplina congressual, o que abortaria a possibilidade de implementar reformas importantes. Estaria obrigado a governar excessivamente por decreto, gerir sem inovar, tocar a máquina sem ousar grandes mudanças. Amargaria impopularidade e pouca vitalidade para a sua defesa na sociedade. Os partidos da base tentariam dissociar sua imagem da do governo, disputariam espaço a todo instante, para forçar reformas ministeriais, e se lançariam antecipadamente à sucessão.
Por sua vez, setores do PT encampariam um “sebastianismo” favorável à imperiosa necessidade da volta de Lula, enquanto PMDB e PSB acenariam com a possibilidade de candidaturas próprias (tal e qual na experiência do Governo Sarney, que foi solapado pela antecipação do debate sucessório e profusão de candidaturas egressas de partidos aliados). Trata-se de um quadro que não interessaria nem ao próprio Lula, pois levaria à erundinização do governo, desgastando, de roldão, a imagem do ex-presidente e do PT (tal e qual fizeram do governo Erundina, em 1989).
A rigor, cenários diferentes não são excludentes. Aliás, raramente o são. É difícil que ocorram em estado puro. É mais comum que despontem combinados, na verdade, engalfinhados, brigando um contra o outro.
Essa natureza instável e contraditória deixa o cenário que prevalece em um dado momento pronto para ser distorcido e engolido por seu reverso. A toda hora, se vê cada um deles tentando se firmar. Os que prevalecem são projetados também pelas circunstâncias. Não são objeto da vontade ou desenvoltura de um único ator político.
Lula teve que assumir um cenário paloccista entre 2003 e 2005, por conta da instabilidade econômica herdada do governo anterior, acirrada pelos temores insuflados na campanha de 2002. Da mesma forma, os temores atuais de que a economia está a um passo de fugir ao controle e de que a inflação voltou a ameaçar o sono dos brasileiros faz com que os médicos defensores do remédio amargo voltem a bater às portas do governo (a respeito, leia-se o artigo de Paulo Kliass, “Inflação: a mesma desculpa de sempre!”, na Carta Maior http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=4922 ).
Neste momento, os três cenários estão conflagrados, em franca disputa.
As dificuldades com o PMDB instilam o risco de o governo não contar com uma coalizão sólida no Congresso, o que impediria a presidenta de transformar seu poder de iniciativa (ancorado em suas prerrogativas) em poder de agenda (a aprovação congressual das matérias de seu interesse prioritário).
O cenário lulista tem como ponto prioritário a agenda social e desponta a cada passo que se dá em torno do plano de erradicação da miséria. Mas há ainda desafios que, se esquecidos, deixariam uma significativa agenda de mudanças na prateleira. É o caso da Consolidação das Leis Sociais e da regulamentação da Emenda 29 (que daria mais recursos à saúde, saindo da atual situação de subfinanciamento). Além disso, o PAC e a política de investimentos das estatais (Petrobras, com o pré-sal; Caixa Econômica, com o “Minha Casa, Minha Vida”; a política de crédito dos bancos públicos, entre outras), que dizem respeito à alavancagem econômica do País, carecem de uma perspectiva mais antenada com o longo prazo.
As reformas tributária, política, trabalhista e previdenciária são temas para debate. Nenhum deles projetou-se no debate eleitoral e os candidatos não os colocaram entre suas preferências. São temas mastodônticos, lentos demais por conta das inúmeras arestas federativas e jurídicas, por contrariar atores com poder de veto e contar com poucos estímulos diante da insegurança suscitada por suas mudanças.
A questão da regulação da mídia depende de uma clara demonstração de força do governo, que precisa certificar-se de que conseguirá aprovar no Congresso aquilo que pretende e segurar o “tranco” que levará se mexer no vespeiro que afeta um grande número de parlamentares - os que têm relações orgânicas com a atual configuração do sistema de concessões públicas de rádio e tv.
Consolidar um cenário favorável depende da contenção dos cenários adversos. Os primeiros cem dias são tradicionalmente o momento decisivo e definidor do que um governo pode vir a ser e de sua habilidade para tourear conflitos.
Para a presidenta Dilma, seus primeiros cem dias darão a embocadura de um governo que começou sem lua de mel, que carrega nos ombros a responsabilidade de colher o que Lula plantou e de realizar aquilo que o ex-presidente não teve tempo nem condições de concluir.
Em seu primeiro ano, um governo deve preocupar-se em fazer as coisas acontecerem, mas não pode descuidar de um requisito essencial: saber administrar as expectativas que levantou a seu respeito. A tendência é que se compare 2011 com 2010. O correto e justo, no entanto, seria comparar 2011 com 2003 - o primeiro ano de Lula com o primeiro de Dilma. A correção dessa expectativa é a primeira grande tendência que Dilma e sua equipe precisarão reverter, enquanto ainda há tempo.
É preciso lembrar que um governo, mesmo de continuidade, começa marcado por certa desaceleração, em função de um novo arranjo da coalizão governante, do assento de novos dirigentes, da realocação de sua burocracia, da redefinição de prioridades e do início de novos métodos de trabalho e de um padrão diverso de relacionamento, dentro e fora do governo. O avião pilotado por Lula pousou. O pilotado por Dilma terá necessariamente que fazer uma nova decolagem.
Antonio Lassance é pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e professor de Ciência Política.
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