"Rebeldes
Líbios" são formados por ex-membros do esquadrão da morte colombiano,
mercenários alugados pela CIA, tunisianos desempregados e tribos inimigas de
Kadafi
Como a OTAN venceu a guerra
Apesar do reaparecimento espetacular do filho de Gaddafi,
Saif al-Gaddafi, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN)
virtualmente já venceu a guerra civil líbia (“atividade militar cinética”, como
insiste a Casa Branca). As massas do “povo líbio” foram, no máximo,
espectadoras, ou atores com papel pequeno, mostrados sob a forma de poucos
milhares de “rebeldes” armados com Kalashnikovs.
Inicialmente, apostaram em “R2P” (“responsabilidade de
proteger”). Mas, logo no início, essa “R2P”, manobrada por França e
Grã-Bretanha e apoiada pelos EUA, já apareceu convertida, por passe de mágica,
em “mudança de regime”. Daí em diante, as estrelas do show nessa produção foram
“conselheiros”, “empresas contratadas” ou “mercenários” ocidentais e
monárquicos.
A OTAN começou a ganhar a guerra, ao iniciar a Operação
Sirene no Iftar – sirenes que soaram interrompendo o jejum do Ramadan – no
sábado à noite. “Sirene” foi o nome código para invadir Trípoli. Foi o gesto
final – e desesperado! – da OTAN, para mostrar força, quando ficou claro que os
“rebeldes” caóticos nada haviam conseguido, nem depois de cinco meses de luta
contra as forças de Gaddafi.
Até aquele momento, o “Plano A” da OTAN era assassinar
Gaddafi. O que os garotos-propaganda da R2P – de direita e de esquerda –
chamavam de “pressão continuada pela OTAN” acabou com a OTAN pedindo a Deus que
acontecesse um de três milagres: que conseguissem assassinar Gaddafi; que
Gaddafi se rendesse; ou que sumisse.
Não que qualquer desses resultados tivesse impedido a OTAN
de bombardear residências, universidades, hospitais e até áreas bem próximas do
Ministério do Exterior. Tudo – e todos – virou alvo da OTAN.
A “Operação Sirene” mostrou elenco colorido de “rebeldes da
OTAN”, fanáticos islâmicos, jornalistas alugados “incorporados”, grupos sempre
voltados para as câmeras de televisão e jovens da Cyrenaica manipulados por
desertores oportunistas do governo Gaddafi, de olho nos gordos cheques das
gigantes Total e BP, do petróleo.
Para a operação “Sirene”, a OTAN trouxe armamento
(literalmente) novinho em folha: helicópteros Apache atirando sem parar e jatos
bombardeando furiosamente tudo que havia à vista. A OTAN supervisionou o
desembarque de centenas de soldados de Misrata na costa leste de Trípoli,
enquanto um navio de guerra da OTAN distribuía armamento pesado para os
“rebeldes”.
Só no domingo, o número de civis mortos pode ter chegado a
1.300 em Trípoli, com pelo menos 5.000 feridos. O Ministério da Saúde anunciou
que os hospitais estão superlotados. Quem, àquela altura, ainda acreditasse que
o furioso bombardeio pela OTAN tivesse algo a ver com “responsabilidade de
proteger” e Resolução n. 1.973 da ONU merecia internamento em hospício.
Antes de iniciar a “Sirene”, a OTAN bombardeou furiosamente
Zawiya – cidade chave, de grande refinaria de petróleo, 50km a oeste de
Trípoli. Com isso, a população de Trípoli ficou sem combustível para os carros.
Segundo a própria OTAN, pelo menos metade das forças armadas líbias foram
“degradadas” – em língua do Pentágono, significa que a OTAN destruiu metade do
exército líbio, entre soldados mortos ou muito gravemente feridos. Foram
dezenas de milhares de mortos. Esse massacre explica também o misterioso
desaparecimento dos 63 mil soldados encarregados de defender Trípoli. E também
explica que o regime de Gaddafi, que se manteve no poder durante 42 anos,
parece ter caído em menos de 24 horas.
Devastação humana: uma seleção norte-americana de covardia e
estupidez
O toque da “Sirene” macabra da OTAN – depois de 20 mil
missões e mais de 7.500 ataques contra alvos no solo – só foi possível por
causa de uma decisão crucial do governo Barack Obama no início de julho, como
se lê hoje no Washington Post: os EUA passaram [em julho] a “partilhar material
mais sensível com a OTAN, inclusive imagens e sinais interceptados, que
passaram a ser fornecidos, além de aos pilotos no ar, também a soldados de
equipes britânicas e francesas de operações especiais no solo” [2].
Quer dizer: sem a contribuição do descomunal poder de fogo
dos EUA e correspondentes agentes, satélites e aviões-robôs (drones) tripulados
à distância, a OTAN ainda estaria atolada na Operação Pântano Eterno Sem Saída
na Líbia – e o governo Obama jamais conseguiria extrair desse drama “militar
cinético” nem, que fosse, algum simulacro de grande vitória.
Quem são essas pessoas?
Conflitos étnicos e tribais estão a ponto de explodir.
Muitos dos berberes das montanhas do oeste, que entraram em Trípoli vindos do
sul no fim de semana, são salafitas linha (muito) dura. O mesmo se deve dizer
da “nuvem” salafitas/Fraternidade Muçulmana da Cyrenaica – que recebeu
instrução diretamente de agentes da CIA-EUA que estão na região. Dado que esses
fundamentalistas "usaram" os europeus e norte-americanos para
aproximar-se do poder, ninguém duvide que se organizarão rapidamente como
furioso grupo guerrilheiro, caso sintam-se marginalizados pelos chefões da
OTAN.
A tal grande “revolução” com base em Benghazi, que foi
vendida ao ocidente como movimento popular, sempre foi mito. Há apenas dois
meses, os “revolucionários” armados mal chegavam a 1.000. A OTAN então decidiu
construir ela mesma um exército mercenário – que reuniu os tipos mais
assustadores, de ex-membros de um esquadrão da morte colombiano a pessoal
recrutado no Qatar e nos Emirados Árabes Unidos, associados a tunisianos desempregados
e membros das tribos inimigas da tribo de Gaddafi. O pessoal é esse, acrescido
de esquadrões de mercenários alugados pela CIA – salafitas em Benghazi e Derna
– e a gangue da Fraternidade Muçulmana, gente da equipe da Casa de Saud.
É difícil não lembrar da gangue da droga do UCK (Ushtria
Çlirimtare e Kosovës, Exército da Libertação do Kosovo) – na guerra que a OTAN
“venceu” nos Bálcãs. Ou dos paquistaneses e sauditas, com apoio dos EUA, que
armaram “combatentes da liberdade” no Afeganistão nos anos 1980s.
E há também o muito suspeito grupo de personagens que
compõem o Conselho Nacional de Transição [ing. Transitional National Council
(TNC)], de Benghazi.
O chefe, Mustafa Abdel-Jalil, foi ministro da Justiça de
Gaddafi de 2007 até desertar, dia 26/2/2011, estudou direito civil e sharia na
Universidade da Líbia. Talvez esteja habilitado a cruzar lanças retóricas com
os fundamentalistas islâmicos em Benghazi, al-Baida e Delna, mas pode usar seus
conhecimentos para fazer avançar seus interesses em algum novo arranjo do
poder.
Mahmoud Jibril, presidente do conselho executivo do TNC,
estudou na Universidade do Cairo e, depois, na University of Pittsburgh. É a
principal conexão com o Qatar: trabalhou na gestão do patrimônio de Sheikha
Mozah, esposa super poderosa do emir do Qatar.
Há também o filho do último rei da Líbia, rei Idris, que
Gaddafi derrubou há 42 anos (em golpe sem derramamento de sangue). A Casa de
Saud adoraria ver nascer uma nova monarquia no norte da África. E o filho de
Omar Mukhtar, herói da resistência contra o colonialismo italiano – figura mais
secular.
O novo Iraque?
Esperar que a OTAN vença a guerra e entregue o poder aos
“rebeldes” é piada. A Agência Reuters já noticiou que uma “força-ponte” de
cerca de 1.000 soldados do Qatar, Emirados e Jordânia chegará a Trípoli para
atuar como polícia. E o Pentágono já começou a “vazar” que militares
norte-americanos atuarão “em terra” para “auxiliar na segurança dos
equipamentos”. Toque sutil, que diz bem claramente quem realmente estará no
comando: os neocolonialistas “humanitários” e seus asseclas árabes.
Abdel Fatah Younis, o comandante “rebelde” assassinado pelos
próprios “rebeldes” era homem do serviço secreto francês. Foi morto por uma
facção da Fraternidade Muçulmana – exatamente quando Sarkozy, o Grande
Libertador de Árabes, tentava negociar algum acordo com Saif al-Islam, filho de
Gaddafi formado pela London School of Economics e, ontem, renascido dos mortos.
Tudo isso para dizer que os grandes vencedores são Londres,
Washington, a Casa de Saud e o Qatar (que mandou jatos e “conselheiros” e já
estão administrando as vendas de petróleo). Com especial menção para o conjunto
Pentágono/OTAN – posto que o Comando dos EUA na África (Africom) conseguirá
afinal sua primeira base africana no Mediterrâneo; e a OTAN, que está um passo
mais próxima de declarar o Mediterrâneo “um lago da OTAN”.
Islamismo? Tribalismo? Esses são pequenos problemas, ante a
nova terra da fantasia que se escancara para o neoliberalismo. Já praticamente
ninguém duvida que os novos mestres do ocidente tentarão reviver versão
amigável da nefasta, rapace, nefanda Autoridade Provisória da Coalizão [ing.
Coalition Provisional Authority (CPA)], convertendo a Líbia em delírio
neoliberal hardcoreà custa de 100% das propriedades líbias, com repatriação de
lucros, corporações ocidentais com os mesmos direitos que as empresas locais,
bancos estrangeiros comprando os bancos locais, renda baixa para os pobres e
impostos idem para as empresas.
Simultaneamente, a fissura profunda que separa o centro
(Trípoli) e a periferia, pelo controle dos recursos de energia, se aprofundará.
BP, Total, Exxon, todas as gigantes ocidentais do petróleo serão fartamente
recompensadas pelo Conselho de Transição – em detrimento de empresas chinesas,
russas e indianas. E soldados da OTAN “em terra” certamente ajudarão a impedir
que o Conselho saia da linha.
Executivos da indústria do petróleo estimam que demorará no
mínimo um ano para que a produção de petróleo volte ao nível de antes da guerra
civil, de 1,6 milhões de barris/dia, mas dizem que os ganhos anuais do petróleo
renderão aos novos governantes cerca de US$50 bilhões de dólares/ano. Muitos
estimam que as reservas líbias alcancem 46,4 bilhões de barris de petróleo, 3%
do petróleo do mundo, equivalendo a cerca de $3,9 trilhões aos preços de hoje.
As reservas conhecidas de gás líbio chegam a 5 trilhões de pés cúbicos.
No frigir dos ovos, “R2P” vence. O imperialismo humanitário
vence. As monarquias árabes vencem. A OTAN como Robocop global vence. O
Pentágono vence. Mas nem tudo isso satisfaz os suspeitos de sempre – que já
pedem o envio de uma “força de estabilização”. E tudo isso enquanto os
progressistas categoria “perderam-o-rumo-e-o-prumo” em várias latitudes,
continuam a louvar a Sacra Aliança entre neocolonialismo ocidental, monarquias
árabes ultra reacionárias e salafitas hardcore.
Ainda não terminou. Só terminará quando a onça árabe
aparecer p’rá beber água . Seja como for, próxima parada: Damasco.
Texto de Pepe Escobar, traduzido pelo Coletivo Vila Vudu
Pragmatismo Político
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