Cristovam Buarque é senador pelo PDT de Brasília,
ex-ministro da Educação e ex-reitor da Universidade de Brasília
A primeira vez que escutei falar em Aloysio Campos da Paz,
em 1980, ele foi tratado como um diretor autoritário e privatista da saúde.
Era a opinião de profissionais em greve no antigo Hospital
Sarah, que estavam contra o sistema que ele implantava, elevando os salários,
mas exigindo dedicação exclusiva, avaliando competência e organizando
disciplina de seu corpo de funcionários.
Essa visão mostra como os conceitos de “democracia” e
“público” foram apropriados pela elite brasileira, por meio do patrimonialismo
latifundiário, que se transformou em empresarial, convivendo com o patrimonialismo
trabalhista. Isso resume como a República foi sendo anulada pelo
corporativismo.
Trinta anos depois, pode-se considerar que, naquela disputa,
Campos da Paz estava mais próximo do doente. Entre o estatal e o público, entre
a visão estatista e a visão publicista, entre os que são servidores do Estado e
os que devem ser servidos pelo Estado, ele ficou com o público, ao lado do
doente.
Na área da saúde, Campos da Paz faz parte de um grupo de
pessoas sintonizadas com o interesse público à frente dos interesses privados.
Sem respeito e boa remuneração fica impossível ter bons profissionais da saúde,
mas o respeito precisa ser mútuo - do povo com o médico, pagando-lhe salário
digno, e do médico com o povo, transformando-o com carinho e eficiência.
Bem antes desse debate, entre público e estatal, que só
agora se amplia, ele trouxe a idéia de que o serviço de saúde estatal pode não
ser sinônimo de serviço público de saúde; que esse serviço estatal só se
justifica se servir ao público.
Defendeu e argumentou que o serviço estatal existe para
cuidar dos doentes, pagando bem aos médicos e demais servidores, respeitando-os
como servidores, mas exigindo deles o compromisso absoluto com a saúde.
No livro Percorrendo Memórias - Editora Sarah Letras, Campos
da Paz descreve o momento decisivo em que, coerentemente, abandona seu
consultório privado e opta, ainda jovem, pelo exercício exclusivamente na saúde
pública.
Depois ele radicaliza, corajosa e corretamente, ao defender
que não bastam pequenos ajustes no SUS, nem mais recursos, mas uma revolução no
sistema de saúde, com publicização do sistema, mesmo que não seja
necessariamente estatal.
A visão que ele tinha, e ainda tem, está refletida em entrevista
à Revista Veja, de janeiro de 1996, na qual diz: “A lógica do sistema (da saúde
brasileira) induz criar a doença e a lucrar com ela, não a utopia médica de
acabar com a doença”.
No sistema atual, mesmo com o SUS, a doença tem sido motivo
para viabilizar o lucro das indústrias farmacêuticas e de equipamentos, bem
como o salário de servidores, mais do que para atender aos doentes.
Ao longo dos anos, fui convivendo e percebendo cada vez mais
seu vanguardismo e admirando crescentemente sua firmeza de princípios e seus
compromissos sociais.
O livro Percorrendo Memórias mostra a trajetória desse
grande médico e cidadão, desde sua origem de descendente de médicos, comunistas
e militares. Com simplicidade, ele descreve como cresceu e foi educado; e
lembra o mundo ao redor que testemunhou. São as memórias do Brasil, entre Rio
de Janeiro, Brasília, e a Inglaterra, no estimulante período entre 1950 e 2010.
O título do livro mostra a modéstia do autor, ao chamá-lo de
Memória – dos outros, do mundo - e não de autobiografia que sua vida justifica
perfeitamente.
Em sua vida, ele viu uma cidade nascer e crescer até o
tamanho de uma grande metrópole; aprendeu medicina e o compromisso social ao
qual deveria servir; construiu o desenvolvimento científico, tecnológico e
social da Rede Sarah; foi pioneiro na criação de técnicas, tanto em
equipamentos, quanto em métodos de tratamento e de gestão; fez descobertas
cientificas hoje reconhecidas internacionalmente.
Raras pessoas, no mundo, tiveram a chance e a competência para
viver e fazer tanto quanto ele. Talvez nenhum outro possa ter sido testemunha e
ator de fatos como esses.
Ainda mais raros são aqueles capazes de escrever de maneira
tão viva o testemunho do mundo ao seu redor, pintando o processo histórico do
país; e com pinceladas certeiras, os retratos de personagens que vão se
sucedendo, na família, no ambiente profissional e na vida política.
Essas memórias merecem ser lidas por cada brasileiro, cada
médico e, sobretudo, por aqueles que antes desconfiavam de Campos da Paz, por
verem nele um privatista, no lugar de um radical defensor da saúde pública, um
médico vermelho.
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