A edição da revista Veja do dia 7 de setembro traz uma
reportagem cujo título é “Como aumentar o peso do seu voto”, onde traz os dez
supostos motivos para apoiar a tal ideia. Para as pessoas progressistas, de
visão política arejada e saudável, que defendem a liberdade e a participação
popular na política, uma simples proposta defendida pelo Grupo Abril já traz a
leitura de não ser uma iniciativa positiva, mas de retrocesso, de cerceamento
da democracia.
Antes de comentar passo a passo o que passarei a chamar de
10 mentiras (e meias verdades) é bastante revelador o preâmbulo da matéria e
algumas opiniões constantes das sete páginas do referido texto. Estabelecendo
“cálculos” sem nenhuma comprovação, eles partem do pressuposto de que, se o
voto distrital estivesse implantado no Brasil, o PT teria no mínimo 15
deputados a menos. Vejam aí, amigos e amigas, que já fica logo claro qual o
interesse do grupo – reduzir a representação do partido que, ao lado de outros,
vem conduzindo mudanças extraordinárias no país, mudanças essas que precisam
ser aprofundadas, em prol dos trabalhadores, do povo e da soberania do Brasil.
Mais adiante, em várias passagens de cada “motivo” eles vão
alegar acintosamente, sem meios termos, numa demonstração clarividente de seus
preconceitos e interesses, que o voto distrital vai reduzir a possibilidade de
eleição de sindicalistas e de representantes dos movimentos sociais. Isso
mesmo; para Veja, representação de trabalhadores e dos movimentos sociais no
Congresso é nociva, numa visão elitista de que ali só comporta os prepostos das
classes dominantes, os representantes da grande burguesia (banqueiros, grandes
empresários e latifundiários). Numa previsão otimista, novamente saído de outro
esdrúxulo "cálculo", vão dizer que com a nova fórmula 35
sindicalistas não teriam sido eleitos em 2010.
Para entender melhor a polêmica, o voto distrital puro (tem
outra modalidade, o voto distrital misto) passaria a ser como uma eleição
majoritária, uma eleição de prefeito, por exemplo. Então, para se votar num
vereador ou deputado, uma cidade como Salvador seria dividida em distritos, suponhamos
20 (o total de zonas eleitorais) e cada uma delas teria uma eleição para
vereador ou deputado e cada partido apresentaria um candidato em cada uma
delas. Esse não é o assunto em análise aqui, mas imagine só a confusão que
seria a divisão desses distritos num país tão amplo e complexo como o Brasil.
Se numa cidade já seria pra lá de complicado, imaginemos esses distritos no
âmbito do restante de cada estado. Vamos aos argumentos da única revista
norte-americana escrita em português, como já disse um deputado comunista:
As 10 mentiras (e meias verdades) de Veja sobre o voto
distrital
1 - Escolher fica mais fácil. Eu fico imaginando uma
campanha eleitoral numa capital onde cada partido tenha candidatos majoritários
espalhados por toda parte e como o eleitor se comportaria. Diz a revista que o
número menor de candidatos facilitaria a vida do eleitor, mas esse eleitor vai
ter contato com a campanha de todos os demais candidatos de outros distritos
eleitorais. Eventualmente pode até querer votar em um candidato de outro
distrito que não seja o seu e ficar impossibilitado. O argumento da redução de
número de candidatos é verdadeiro, mas daí concluir que fica mais fácil a
escolha é apenas um desejo da revista. E a tese de redução do número de
candidatos, em geral, parte daqueles que querem restringir a democracia e
transformar o país num sistema bipartidário, antidemocrático, nos moldes dos
EUA e Inglaterra.
2 - Quem elege fiscaliza. Diz a revista, o que é verdade,
que os eleitores elegem seus deputados e logo depois nem lembram do nome
destes, e cita uma pesquisa de que apenas 22% do eleitorado se lembra em quem
votou para deputado federal. Mas o problema da falta de fiscalização dos
mandatos por parte do eleitor não guarda relação necessariamente com a forma de
eleger, mas sim, na sua despolitização, decorrente de tantos fatores, entre os
quais, o nefasto papel dos meios de comunicação que têm como prática a
desmoralização da classe política, e o que é pior, a tentativa de colocá-los
todos no mesmo patamar de imoralidade, quando certamente existem parlamentares
sérios. Não me consta que o nível de fiscalização de um prefeito pelo eleitor
seja muito diferente do de um parlamentar.
3 - A campanha fica mais barata. Ao final da argumentação
desse ponto, talvez a maior mentira de todas, eles concluem afirmando que além
de baratear a campanha, a independência do eleito aumenta. O argumento é de que
o candidato no atual sistema faz campanha num estado inteiro e os custos são
exorbitantes e essa campanha milionária seria o passo para a corrupção do
eleito. Primeiro que os candidatos não fazem campanha no estado inteiro – no
geral eles têm suas bases principais, mas as campanhas são caras mesmo. Mas o
problema é que uma eleição majoritária, no geral, é muito mais cara do que uma
eleição proporcional. Uma eleição para prefeito é bem mais cara do que a
eleição de um vereador, como a de um governador é bem mais cara do que a de um
deputado estadual. A eleição de um deputado por um distrito vai exigir uma
estrutura semelhante à campanha de qualquer outra eleição majoritária, como a
de um prefeito. E a tese de que aumenta a independência do eleito é uma
falácia, pois ao contrário, essa tal dependência pode até aumentar, pois os
financiadores serão os mesmos de sempre. E o caminho que leva um deputado à
corrupção é sua índole, seus princípios (ou a falta deles), e não financiadores
de campanha. No Congresso Nacional existem dezenas de deputados que recebem
financiamentos de empresas, mas não perderam a independência.
4 - Acaba o efeito Tiririca. Veja diz que "por causa da
obtusa regra do quociente eleitoral", os eleitos se dão pela divisão dos
votos pelas siglas e não pelos indivíduos mais votados. Mas esse formato, que
não é o ideal, admitamos, é muito mais justo do que a eleição pelos mais
votados, pois é deste modo que se fortalecem os partidos – a eleição não se dá
em torno de indivíduos, mas em torno de ideias, ideias estas difundidas por
partidos políticos. Portanto, se o partido de Tiririca elegeu deputados com a
sobra dos votos dele, é uma divisão, digamos, ajustada, pois a representação
deve sempre valorizar o partido em detrimento de pessoas. Diz a reportagem que
apenas 36 cadeiras foram ocupadas por deputados que fizeram o tal quociente,
mas o tal quociente é pra ser feito por partidos e não por pessoas. Então,
quando eles falam que os outros 477 não tiveram votos para se eleger é uma
mentira. Tiveram sim, mas dentro de suas coligações ou partidos.
5 - O gasto público diminui. O raciocínio é tão frágil, que
parece até ingenuidade. Dizem que com deputados eleitos no voto distrital vai
acabar ou diminuir o dinheiro público que é gasto através de emendas
parlamentares, pois esses deputados não seriam reféns de grupos corporativos,
"mas apenas aos eleitores de suas bases". Se a Veja propusesse o fim
das emendas parlamentares, tese com a qual concordo, seria outra história –
penso que em parte o governo não ficaria refém de chantagistas profissionais em
momentos de votações importantes. Mantendo as emendas, os deputados eleitos no
voto distrital puro fariam tudo igualzinho ao que se faz atualmente, ou até
pior. A guerra pela liberação das emendas (uma pressão vinda dos financiadores
ao seu financiado e das bases nos distritos) continuará a fazer parte do jogo
enquanto elas existirem.
6 - Os corporativistas perdem espaço. Aqui cabe uma
pergunta: quem são os corporativistas? Para Veja, corporativistas são os
deputados que "carreiam recursos públicos para centrais sindicais".
Diz que o modelo atual é ideal para "beneficiar candidatos de categorias
como a dos sindicalistas". Ora, corporativistas autênticos são os
representantes das grandes corporações que financiam as grandes e caras
campanhas eleitorais. Com campanhas eleitorais majoritárias para deputados e
vereadores, a representação desses setores (os ricos e milionários) vai
aumentar substancialmente e consequentemente reduzir a bancada da representação
popular. Este é o verdadeiro objetivo de Veja e a quem ela presta serviço. No
atual Congresso Nacional, a representação dos trabalhadores não chega a 15% e
eles acham isso elevado. Somente a bancada ruralista tem mais que o dobro
disso, sem falar na representação dos demais setores empresariais, que vivem a
travar qualquer lei que beneficie os trabalhadores.
7 - As oligarquias se enfraquecem. Com o voto distrital a
possibilidade é de acontecer justamente o contrário. Quando a Veja fala de
oligarquias, supõe-se que ela se refere a seus parceiros de apoio ao golpe
militar de 1964, como Sarney e ACM, mas o sentido de oligarquia aqui tem o
mesmo de corporativismo para a Veja. Se os tais oligarcas são ligados ao PSDB
ou DEM, o conceito muda, mas se é da base do governo do PT, é oligarca mesmo.
Na argumentação eles dizem, contradizendo argumentos anteriores, que as tais
famílias que se reproduzem no poder gastariam muito dinheiro (eles disseram
antes que a campanha ficaria mais barata). Assim, as forças políticas com menos
acesso ao poder econômico ficariam em situação difícil para se eleger, ou seja,
facilitaria a vida dos oligarcas endinheirados.
8 - Aumenta a força das capitais. Dizem eles que com a
campanha em todo o estado, os representantes das capitais ficam de fora e que a
parcela mais politizada do eleitorado fica sub-representada. Eu não sei de onde
eles tiraram esses números, mas o que acontece de fato é que qualquer político
pode fazer campanha na capital e no interior, e é bom que assim seja. O que
ocorre com a representação maior de deputados do interior vem por uma razão
óbvia: com poucas exceções, na maioria dos estados a população mora no
interior, a exemplo da Bahia, onde o eleitorado da capital não chega a 20% do
total de eleitores. E no voto distrital isso não vai mudar em nada, pois o
percentual entre capital e interior não sofrerá bruscas alterações, a não ser
que venham casuísmos (inaceitáveis) ou uma avalanche de êxodos que não estão
previstos. Agora, o que imagino como ideal seria que cada estado tivesse o
número de deputados proporcional ao número de eleitores/população, pois aí
existe uma enorme distorção que não é o caso tratar aqui.
9 - O Congresso é fortalecido. É mesmo, fortalecido com uma
maior representação da bancada patronal, dada a eleição majoritária consumindo
enormes recursos que saem dos bolsos dos poderosos. O argumento é de que
"o eleitor passa a votar contra o candidato que não gosta" (sic)..
Quando numa eleição para prefeito um eleitor vota num candidato, não significa
necessariamente que ele não goste de outro. Diz ainda que no sistema distrital
o deputado precisa fazer esforço para se destacar. E algum deputado no atual
sistema não faz outra coisa senão tentar se destacar?
10 - A corrupção reflui. Aqui é bom lembrar que a direita
brasileira, representada por Veja (um verdadeiro partido político), adota
critérios estranhos para se preocupar com a corrupção. Quando vem de suas bases
políticas (PSDB/DEM) ou o assunto não aparece ou é tratado de maneira cordial,
civilizado. Quando o escândalo, muitas vezes fabricado pela própria revista, se
refere ao PT e aliados, é um verdadeiro massacre, como a crueldade que eles
sistematicamente promovem contra José Dirceu, uma perseguição que beira ao que
existiu de pior no fascismo. O argumento é de que no toma-lá-dá-cá em troca de
apoio o governo oferece cargos aos deputados que indicam pessoas inescrupulosas
para fazer estripulias. Dizem eles que nos países que têm voto distrital o índice
de corrupção é 20% menos do que onde o sistema é outro (isso chega a ser
risível). Repetindo, a corrupção se origina não é no modelo (que ajuda, é
verdade), mas no mau caratismo de espertalhões.
Combate à corrupção
Para concluir, a forma de reduzir a corrupção (não para
acabar) é o fim do financiamento privado, pois é daí que se originam quase
todos os escândalos que frequentam diariamente os telejornais. Como o
financiamento é privado, nesse exato momento, tem algum deputado recebendo
algum pacote em alguma parte do Brasil para pagar dívidas e se aproveitando
para uma parte alimentar suas contas pessoais. É exatamente isso que acontece,
lembrando que a regra não se aplica a uma parte da bancada sadia do Congresso
Nacional – que é minoritária. Depois esses deputados vão carrear emendas e
projetos que serão executados pelos seus financiadores e na hora que a grana é
liberada, a parte da campanha volta na forma de superfaturamento e outras. E na
eleição seguinte, o mecanismo se reproduz. Por que a Veja e os partidos
conservadores não concordam com o financiamento público? Porque sabem que o
poder econômico seria esvaziado e consequentemente representantes do povo – que
Veja não quer por lá – poderiam aumentar sua participação.
E o financiamento público deve vir junto com as listas
fechadas, como ocorre em boa parte dos partidos na Europa. O eleitor, ao invés
de votar em candidatos individuais, o que desqualifica a política, votaria em
partidos, que apresentariam suas listas de candidatos. E a depender da votação
de cada partido, as bancadas seriam eleitas proporcionalmente à votação que
tiverem, ou seja, se o PT tem 25% dos votos, obtém 25% da quantidade de vagas,
e assim sucessivamente. Uma reforma política é fundamental para acabar com essa
relação promíscua entre políticos e empresários corruptores, mas sinceramente,
não acredito que ocorra. O conservadorismo existente no Congresso Nacional não
permite. Infelizmente. Mas voto distrital nem pensar. Excluir minorias de
representação política é inadmissível numa democracia plena. É o caminho para o
autoritarismo.
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