A oposição feroz dos conglomerados dos meios de comunicação,
a resistência desrespeitosa dos magnatas do campo, as chantagens dos barões da
indústria, a má vontade das classes mais favorecidas, tudo isso somado não foi
capaz de abalar o prestígio de Cristina
Nem mesmo os mais desatentos compreendem qual é a vantagem
de contestar uma realidade óbvia. Enquanto Cristina fazia história, vencia todos os seus
adversários de forma arrebatadora, consolidando a centro-esquerda na América do
Sul e com intenso apoio popular, a Rede Globo destacava em reportagens e nos
comentários dos seus analistas políticos que o governo de Kirchner era
anti-democrático, em mais uma clara demonstração de desprezo à liberdade de
escolha de um povo; de cidadãos livres e pensantes. Abaixo, Eric Nepomuceno
traz um balanço significativo do que representa a reeleição de Cristina para o
povo argentino, para o Brasil e para o fortalecimento de um modelo político
progressista na América Latina.
Uma Argentina sem surpresas - e sem oposição
Não houve nenhuma surpresa, e a grande curiosidade, até
tarde da noite do domingo, 23 de outubro, era saber qual a porcentagem de votos
que daria a Cristina Fernández de Kirchner uma das mais estrondosas vitórias da
história da Argentina. Havia, é verdade, outra curiosidade: quanto por cento do
eleitorado faria a glória do médico Hermes Binner, que até maio ou junho mal
roçava a casa dos 3% nas pesquisas e se consolidou como segundo mais votado,
deixando para trás, desnorteadas, as figuras um tanto anêmicas de Ricardo Alfonsín,
da União Cívica Radical, e Eduardo Duhalde, da dissidência direitista do
peronismo?
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As primeiras projeções davam a ela 53% dos votos. É mais do
que o falecido presidente Raúl Alfonsín teve em 1983, nas primeiras eleições da
Argentina depois de sete anos da mais bárbara de suas muitas ditaduras
militares (51,7%). Mais do que o dentista Hector Cámpora, designado por Perón,
teve em março de 1973, pondo fim a outra ditadura militar (49,53%). É quase a
mesma coisa que Juan Domingo Perón teve em 1946 (56%), dando início a uma
mudança radical na Argentina e criando um movimento político que esteve
presente, de uma forma ou de outra, em tudo que aconteceu no país até hoje.
Perde longe, é verdade, para a vitória do mesmo Perón em setembro de 1973,
quando levou 60% dos votos e massacrou o líder da União Cívica Radical, Ricardo
Balbín, que mal e mal chegou a 24%. Conseguiu, porém, a mesma e impactante
diferença (36 pontos) sobre o segundo colocado.
Passado o vendaval, o que será da oposição tradicional, que,
nocauteada pelas urnas, sai do embate completamente sem rumo?
Tanto Ricardo Alfonsín como os dissidentes da direita
peronista, o ex-presidente Eduardo Duhalde e Alberto Rodríguez Saá, enterraram
definitivamente suas pálidas lideranças. Nenhum deles foi, em momento algum,
alternativa viável à permanência de Cristina Kirchner na Casa Rosada. A grande
figura da direita argentina, o atual intendente da cidade de Buenos Aires,
Maurício Macri, preferiu não correr riscos. Ladino, não deu apoio ostensivo a
nenhum dos candidatos da direita: deixou que naufragassem estrepitosamente na
mais gelada solidão. Está de olho nas eleições presidenciais de 2015. Até lá, o
kirchnerismo tratará de construir um novo herdeiro. Se mantiver o rumo trilhado
até agora, não parece tão difícil assim.
O fato de Cristina Kirchner e Hermes Binner terem somado 70%
dos votos argentinos é um sinal bastante claro da consolidação da
centro-esquerda no cenário sul-americano. Uma espécie de rotunda e rigorosa pá
de cal nos tempos do neoliberalismo desenfreado que levou a Argentina ao
precipício e quase afundou de vez outros países do continente. A coincidência
de governos de esquerda e centro-esquerda no Uruguai, no Peru, na Argentina, no
Paraguai e no Brasil, somada aos governos de uma esquerda mais dura no Equador,
na Bolívia e na Venezuela, isola ainda mais os remanescentes da direita,
encastelados na Colômbia e no Chile.
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Em tempos de feia crise global, não deixa de ser um alento
saber que há uma vereda compartilhada por estas comarcas com tantos séculos de
sacrifício nas costas. O avassalador triunfo de Cristina Kirchner reafirma essa
tendência. Pela primeira vez em sabe-se lá quanto tempo, há uma nítida maioria
da esquerda e da centro-esquerda governando os países sul-americanos.
Para quem, enfim, ainda se pergunta pelas razões da vitória
de Cristina Kirchner, um pouco de números talvez ajude a encontrar a resposta.
Para começo de conversa, a economia cresce ao ritmo de mais de 6% ao ano. O
desemprego é baixo, a maior parte dos trabalhadores chegou a acordos que
asseguraram ganhos salariais reais, os programas sociais do governo atendem a
milhares de famílias. Um dos muitos subsídios atende a três milhões e meio de
menores de 18 anos de idade, com a única condição de que freqüentem a escola e
façam as vacinações obrigatórias. Em quatro anos – entre 2007 e 2010 – a
pobreza baixou de 26% a 21,5% da população.
A oposição feroz dos grandes conglomerados dos meios de
comunicação, a resistência desrespeitosa dos grandes magnatas do campo, as
chantagens dos grandes barões da indústria, a virulenta má vontade das classes
mais favorecidas, tudo isso somado não foi capaz de abalar o prestígio da
presidente. Ela conquistou apoio de amplas faixas do eleitorado mais jovem,
abriu espaço junto aos profissionais liberais, recebeu o voto massivo dos
pobres.
É com essa força que agora se lança a um segundo mandato que
certamente enfrentará mais dificuldades que o primeiro. A crise global não cede
terreno, as economias periféricas correm risco de contaminação, ajustes duros
terão de ser feito na política econômica do país. O amparo para esses novos
tempos é uma formidável avalanche de votos. Essa a força que a moverá.
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