O ácido sarcasmo da mídia argentina em relação ao Brasil,
geralmente direcionado a rixas futebolistas, agora é de fato plausível
Enquanto Argentina e vizinhos punem os responsáveis
pelos crimes da ditadura, Brasil optar por esquecer
torturadores
A ironia preenche as entrelinhas de uma das manchetes do
site do jornal argentino Página 12 na quinta-feira 27. O curto texto sobre o
Brasil manda uma mensagem direta: “estamos à frente”. O parágrafo diz: “No
mesmo dia em que a Argentina condenava os repressores, a presidenta do Brasil,
Dilma Rousseff, conseguiu aprovar no Senado a criação de uma Comissão da
Verdade para investigar as violações de Direitos Humanos ocorridas na última
ditadura militar (1964-1985). O grupo especial poderá determinar responsabilidades,
mas não terá como levar os possíveis acusados perante à Justiça, pois uma
Anistia ratificada em 2010 pelo Supremo Tribunal ampara os torturadores.”
O ácido sarcasmo da mídia argentina em relação ao Brasil,
geralmente direcionado a rixas futebolistas, é de fato plausível. O país
conseguiu aquilo que nossos ativistas de Direitos Humanos, ex-perseguidos
políticos e parte da sociedade brasileira almejam: o julgamento de agentes do
Estado responsáveis por crimes contra a humanidade no período ditatorial.
Eleito presidente pelo voto direto em 1983, após a queda do
regime autoritário na Argentina (1976- 1983), Raul Alfonsín suspendeu a
autoanistia dos militares. Seu governo julgou a Junta Militar e condenou a
cúpula da ditadura à prisão, mas não resistiu a pressões políticas e sancionou
duas novas leis de anistia.
No entanto, oito anos após derrubar essas mesmas leis, a
Justiça do país condenou à prisão perpétua, na quarta-feira 26, 13 ex-militares
e outros três agentes a mais de 18 anos de detenção. Eles foram julgados por
crimes cometidos pela Escola de Mecânica da Armada (Esma) durante a ditadura
contra 86 pessoas.
O veredito, transmitido ao vivo pela televisão e em um telão
próximo ao tribunal em Buenos Aires, mandou para a prisão o ex-capitão Alfredo
Astiz, de 59 anos, o “anjo loiro da morte”, e o ex-capitão de corveta Jorge
“Tigre” Acosta, inventor do atroz “voo da morte”, no qual prisioneiros políticos
eram atirados sobre o Rio da Prata ou no oceano ainda vivos.
Enquanto isso, as Forças Armadas brasileiras ainda relutam
em reconhecer sequer a existência de crimes contra a humanidade durante a
ditadura e manifestam-se de forma arredia contra iniciativas capazes de punir
agentes do Estado responsáveis por tais violações. Com isso, a imagem da
instituição e do Brasil seguem arranhadas junto aos cidadãos e à comunidade
internacional, pois países vizinhos agem para esclarecer os crimes do período
em seus territórios.
O atraso brasileiro gerou críticas da organização de
Direitos Humanos Anistia Internacional em um relatório divulgado em maio deste
ano. Além disso, o Brasil foi condenado em 2010 pela Organização dos Estados
Americanos (OEA) por não investigar os crimes cometidos pelo regime militar na
repressão à Guerrilha do Araguaia na década de 1970.
A negativa do País em condenar criminalmente agentes do
Estado envolvidos em violações dos Direitos Humanos no período integra uma
série de particularidades do Brasil sobre o assunto, aponta a cientista
política e pesquisadora da Unicamp, Glenda Mezarobba, autora de Acerto de
Contas com o Futuro – A Anistia e suas Consequências: Um Estudo do Caso
Brasileiro (Humanitas, 272 págs., R$ 28,00). “A Justiça reconhece o crime e a
sua responsabilidade na esfera civil. Oferece reparações, mas não identifica o
agente das ações. Isso é peculiar.”
Segundo a especialista, doutora pela Universidade de São
Paulo com uma tese abordando as posições de Brasil, Argentina e Chile sobre
crimes de militares na ditadura destes países, a configuração da Justiça
brasileira também é responsável pelo atraso nacional neste quesito. “Na
Argentina e Chile, as vítimas podem entrar na Justiça para responsabilizar os
agentes do Estado envolvidos, mas no Brasil precisamos da abertura do caso pelo
Ministério Público”, destaca. “Na época da ditadura, o MP estava alinhado aos
militares. Depois dela, não se movimentou a respeito.”
A legislação brasileira apresenta ainda mais empecilhos para
solucionar esses crimes. “Somos pouco permeáveis à jurisprudência, tratados e
acordos internacionais, que, de modo geral, possibilitam alguma
responsabilização por crimes contra a humanidade, por exemplo.”
Além disso, a cientista política aponta que, enquanto a Argentina
rechaçou suas leis de anistia, o Brasil fez um movimento para conseguir esse
recurso na legislação, o que também dificulta o seu questionamento. “É obvio
que o teor da lei brasileira tem o tom desejado pelos militares, mas a
tramitação no Congresso, o debate e as propostas de emendas, embora não
aceitas, proporcionam alguma legitimidade.”
Esse engajamento popular foi inclusive utilizado como
justificativa para a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em considerar a
lei constitucional em 2010. Na época, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)
questionou a validade da anistia para agentes estatais que praticaram tortura,
pedindo que o artigo 1º da Lei 6683 não incluísse agentes públicos autores de
crimes como homicídio e desaparecimento contra opositores do regime.
A pesquisadora da Unicamp, porém, defende que a decisão do
STF não impossibilita o julgamento de torturadores. Segundo Mezarobba, o
Judiciário ainda interpreta a lei com a visão desejada pelos militares e isso
impede que a mesma seja testada pelo Ministério Público. “Apenas recentemente
estão surgindo algumas iniciativas isoladas no Rio Grande do Sul e em São Paulo
para tentar definir os responsáveis por alguns crimes durante a ditadura.”
Wálter Maierovitch, jurista e colunista de CartaCapital,
discorda da pesquisadora e explica que essa discussão se encerrou com o
posicionamento do STF. “Está aí o grande problema da Comissão da Verdade, que
vai realizar uma apuração e não poderá fazer mais nada.” No entanto, o
ex-desembargador aponta que a Corte Interamericana de Direitos Humanos
considera a lei brasileira de anistia ilegal por ser um autodecreto militar.
Em 2010, o STF também alegou não poder alterar e reescrever
a Lei da Anistia por esta ser uma função do Legislativo. Por isso, os deputados
Luiza Erundina (PSB-SP) e Chico Alencar (PSOL-RJ) apresentaram propostas de
revisão da lei no Congresso. Contudo, uma decisão semelhante à ocorrida no
Parlamento uruguaio, que derrubou na última semana a prescrição de crimes
cometidos durante a última ditadura militar (1973-1985), parece distante no
Brasil. As propostas dos parlamentares foram rejeitadas no final de setembro
pela Comissão de Relações Exteriores da Câmara.
Os projetos ainda estão em tramitação e vão passar pela
Comissão de Constituição e Justiça antes de ir a plenário. Contudo, o revés
ocorrido poucos dias após a aprovação da Comissão da Verdade na Casa dificulta
a transformação em lei.
Por outro lado, a Comissão, que aguarda a sanção de Dilma
Rousseff para entrar em vigor, é a aposta do governo no esclarecimento de fatos
durante o período ditatorial. No entanto, não há a possibilidade de punir
agentes do Estado envolvidos em violações dos Direitos Humanos.
Mesmo assim, houve atrito com os militares que pressionaram
o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para alterar o texto original da
proposta em 2010. A corporação não ficou satisfeita com o termo “apurar
violações de direitos humanos praticadas no contexto da repressão política”.
Após pressão, houve uma alteração para “violações praticadas no contexto de
conflitos políticos”.
Desta forma, segundo os integrantes da caserna, a comissão
investigaria também militantes de grupos armados, por exemplo. Este, diga-se,
não foi o único desalinhamento do governo com os militares. Em 2009, o então
ministro da Defesa, Nelson Jobim, e os três comandantes das Forças Armadas
ameaçaram deixar os seus cargos devido à possibilidade da revisão da Lei da
Anistia.
O comportamento dos militares e de alas mais conservadoras
da sociedade brasileira reflete uma máxima irreal de que não é possível punir
apenas agentes do Estado por crimes durante o regime autoritário, pois grupos
de oposição e civis também praticaram atos de resistência violentos.
Mezarobba é, porém, enfática ao questionar os defensores
deste argumento. Para a cientista política, não há como desconsiderar que
inúmeros prisioneiros políticos e opositores de grupos armados cumpriram penas
por seus atos. “Milhares de documentos nos arquivos da Unicamp mostram
processos que tramitaram no Supremo Tribunal Militar. Essas pessoas foram
processadas, condenadas e cumpriram pena com base em uma lei completamente
arbitrária”, diz. E aponta: “Os militares envolvidos na repressão jamais foram
condenados criminalmente.”
A pesquisadora também destaca outros fatores que acentuam a
diferença nas políticas adotadas por Brasil e Argentina sobre o tema. “No
Brasil, os exilados retornaram com a preocupação de fazer política, criar
partidos e disputas eleitorais. Abandonaram a luta pela solução dos crimes da
ditadura.”
Além disso, os argentinos possuíam um movimento de Direitos
Humanos bem estruturado antes do regime militar, ao contrário do Brasil,
explica. Esses grupos ganharam força no País apenas na luta pela anistia, que
também envolvia a redemocratização, o fim das torturas e a condenação de
responsáveis por estes crimes. “No entanto, por algum motivo peculiar a palavra
de ordem vira anistia, que significa esquecer, perdoar. Enquanto isso,
Argentina e Chile utilizam como bandeira a justiça.”
Apesar de adotar uma política de “não confrontar o passado”,
o Brasil é pego em mais uma de suas “particularidades” ao ser capaz de reconhecer
participantes de regimes autoritários de países vizinhos. Prova disto são as
extradições de militares supostamente envolvidos em violações de Direitos
Humanos na América do Sul.
Em 2010, o País extraditou para a Argentina o militar Manuel
Juan Cordero Piacentini, um uruguaio acusado de perseguir opositores da
ditadura no continente nos anos 70. Além dele, o militar argentino Norberto
Raúl Tozzo foi enviado de volta a sua nação na última semana, onde deve
responder pela participação no fuzilamento de 22 presos políticos em 1976.
Uma prática de extermínio comum na Argentina, país marcado
pela mais violenta ditadura da América do Sul. De acordo com estimativas de
ONGs argentinas e internacionais, 30 mil civis foram mortos durante o período
militar, cinco mil deles pelas mãos da Esma.
Enquanto isso, uma aula de preparação do Ministério da
Educação aponta em 384 os desaparecidos políticos ou mortos pela ação de
agentes do Estado entre 1964 e 1985 no Brasil. Contudo, segundo ONGs e
levantamentos de associações de parentes de vítimas da ditadura, o número pode
ser maior. “Temos mais esquecimento que a Argentina nesta luta”, diz Mezarobba.
Para a pesquisadora, esse é um dos “méritos” do regime
militar brasileiro e de João Figueiredo. Ao enviar ao Congresso o projeto da
Lei da Anistia, quiseram a pacificação das famílias e o fim das lembranças, mas
o principal objetivo era, claro, blindar os integrantes da caserna de punições.
“Essa jogada conseguiu capturar corações e mentes e até hoje faz o mesmo
seguindo a lógica da ditadura.” Cabe aos brasileiros livrar-se dela.
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