Como Che veria o que aconteceu e acontece? O que teria sido
dele ao saber que se transformou numa espécie de ícone de sonhos românticos que
perderam seu lugar? Haveria um lugar para ele nesses tempos de avareza, cobiça,
egoísmo?
No dia em que executaram o Che Guevara em La Higuera, uma
aldeola perdida nos confins da Bolívia, Julio Cortázar – que na época trabalhava
como tradutor na Unesco – estava em Argel. Naquele tempo – 9 de outubro de 1967
– as notícias demoravam muito mais que hoje para andar pelo mundo, e mais ainda
para ir de La Higuera a Argel.
Vinte dias depois, já de volta a Paris, onde vivia, Cortázar
escreveu uma carta ao poeta cubano Roberto Fernández Retamar contando o que
sentia: “Deixei os dias passarem como num pesadelo, comprando um jornal atrás
do outro, sem querer me convencer, olhando essas fotos que todos nós olhamos,
lendo as mesmas palavras e entrando, uma hora atrás da outra, no mais duro
conformismo... A verdade é que escrever hoje, e diante disso, me parece a mais
banal das artes, uma espécie de refúgio, de quase dissimulação, a substituição
do insubstituível. O Che morreu, e não me resta mais do que o silêncio”.
Mas escreveu:
Yo tuve un hermano
que iba por los montes
mientras yo dormía.
Lo quise a mi modo,
le tomé su voz
libre como el agua,
caminé de a ratos
cerca de su sombra.
No nos vimos nunca
pero no importaba,
mi hermano despierto
mientras yo dormía,
mi hermano mostrándome
detrás de la noche
su estrella elegida.
A ansiedade de Cortázar, a angústia de saber que não havia
outra saída a não ser aceitar a verdade, a neblina do pesadelo do qual ninguém
conseguia despertar e sair, tudo isso se repetiu, naquele 9 de outubro de 1967,
por gente espalhada pelo mundo afora – gente que, como ele, nunca havia
conhecido o Che.
Passados exatos 44 anos da tarde em que o Che foi morto, o
que me vem à memória são as palavras de Cortázar, o poema que recordo em sua voz
grave e definitiva: “Eu tive um irmão, não nos encontramos nunca mas não
importava, meu irmão desperto enquanto eu dormia, meu irmão me mostrando atrás
da noite sua estrela escolhida”.
No dia anterior, 8 de outubro de 1967, um Ernesto Guevara
magro, maltratado, isolado do mundo e da vida, com uma perna ferida por uma
bala e carregando uma arma travada, se rendeu. Parecia um mendigo, um peregrino
dos próprios sonhos, estava magro, a magreza estranha dos místicos e dos
desamparados. Foi levado para um casebre onde funcionava a escola rural de La
Higuera. No dia seguinte foi interrogado. Primeiro, por um tenente boliviano
chamado Andrés Selich. Depois, por um coronel, também boliviano, chamado
Joaquín Zenteno Anaya, e por um cubano chamado Félix Rodríguez, agente da CIA.
Veio, então, a ordem final: o general René Barrientos, presidente da Bolívia,
mandou liquidar o assunto.
O escolhido para executá-la foi um soldadinho chamado Mario
Terán. A instrução final: não atirar no rosto. Só do pescoço para baixo. Primeiro
o soldadinho acertou braços e pernas do Che. Depois, o peito. O último dos onze
disparos foi dado à uma e dez da tarde daquela segunda-feira, 9 de outubro de
1967. Quatro meses e 16 dias antes, o Che havia cumprido 39 anos de idade. Sua
última imagem: o corpo magro, estendido no tanque de lavar roupa de um casebre
miserável de uma aldeola miserável de um país miserável da América Latina. Seu
rosto definitivo, seus olhos abertos – olhando para um futuro que ele sonhou,
mas não veria, olhando para cada um de nós. Seus olhos abertos para sempre.
Quarenta e quatro anos depois daquela segunda-feira, o homem
novo sonhado por ele não aconteceu. Suas idéias teriam cabido no mundo de hoje?
Como ele veria o que aconteceu e acontece? O que teria sido dele ao saber que
se transformou numa espécie de ícone de sonhos românticos que perderam seu
lugar? Haveria lugar para o Che Guevara nesse mundo que parece se esfarelar,
mas ainda assim persiste, insiste em acreditar num futuro de justiça e
harmonia? Um lugar para ele nesses tempos de avareza, cobiça, egoísmo?
Deveria haver. Deve haver. O Che virou um ícone banalizado,
um rosto belo estampado em camisetas. Mas ele saberia, ele sabe, que foi muito
mais do que isso. O que havia, o que há por trás desse rosto? Essa, a pergunta
que prevalece.
O Che viveu uma vida breve. Passaram-se mais anos da sua
morte do que os anos da vida que coube a ele viver. E a pergunta continua,
persistente e teimosa como ele soube ser. Como seria o Che Guevara nesses
nossos dias de espanto? Pois teria sabido mudar algumas idéias sem mudar um
milímetro de seus princípios.
Diz Eduardo Galeano, que conheceu o Che Guevara: ele foi um
homem que disse exatamente o que pensava, e que viveu exatamente o que dizia.
Assim seria ele hoje.
Já não há tantos homens talhados nessa madeira. Aliás, já
não há tanto dessa madeira no mundo. Mas há os mortos que nunca morrem. Como o
Che.
E, dos mortos que nunca morrem, é preciso honrar a memória,
merecer seu legado, saber entendê-lo. Não nas camisetas: nos sonhos, nas
esperanças, nas certezas. Para que eles não morram jamais. Como o Che.
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