Nossa fixação por títulos e hierarquia é parte do nossa
herança portuguesa. As pessoas aqui querem ser vistas como diferentes, como
superiores aos outros, e não gostam de se misturar
Osmar e Maria enfrentam preconceito de cabeça erguida |
O casal de aposentados Osmar e Maria Ferreira conseguiu
realizar um sonho de longa data: pela primeira vez os dois viajaram em um avião
a caminho de uma semana de descanso sob o sol de Porto Seguro, na Bahia.
As dez parcelas que eles ainda têm de pagar vão morder todo
mês um bom pedaço da renda do pintor aposentado e dos lucros de Maria - que
ainda trabalha em casa como manicure - mas eles têm a certeza que é dinheiro
bem gasto.
"Comida não é a única coisa que precisamos para
viver", diz Ferreira enquanto relaxa a beira-mar. "Isso é que é
viver! Olha que beleza!"
À medida que a nova classe média chega a mais lugares e tem
acesso a novos serviços, surgem, no entanto, tensões com a classe média
tradicional brasileira, que parece sentir seu espaço sendo tomado.
Ao longo dos anos, a mistura de história e praias tropicais
fez de Porto Seguro um dos principais destinos turísticos do Brasil.
Com a economia crescendo e o crédito em expansão, a
"nova classe média" – ou classe C - tem pela primeira vez a
oportunidade de desfrutar das maravilhas naturais do Brasil, que há não muito
tempo eram privilégio de turistas estrangeiros ou brasileiros de maior renda.
Números do Instituto Data Popular - uma empresa de pesquisa
de mercado especializada na classe C - mostram que entre 2002 e 2010 a
participação desse grupo na indústria do turismo saltou de 18% para 34%. Eles
já representam quase a metade (48%) das pessoas que viajam nas companhias
aéreas do país.
Para Maria Ferreira, "é triste que exista esse
preconceito".
"Espero que algum dia as pessoas comecem a compreender
uns aos outros pelo que realmente somos. Eu conheço muitas pessoas ricas que
não são felizes", diz.
'Resistência à igualdade'
Uma rápida travessia de balsa e a uma hora de carro ao sul
de Porto Seguro fica a vila de Trancoso, bem mais exclusiva, graças à distância
e aos preços mais altos. No entanto, mais gente está chegando e quem frequenta
a região há mais tempo teme a invasão do turismo de massa.
"As pessoas que estão chegando agora a Trancoso têm que
mostrar mais educação e mais respeito por este lugar. É um público muito
diferente, que começou a vir aqui ao longo dos últimos anos", reclama a
bombeira reformada Norma Sandes, que há mais de uma década frequenta a região.
O antropólogo brasileiro Roberto DaMatta, professor emérito
da Universidade de Notre Dame (EUA), diz que o crescimento evidenciou a
"resistência à igualdade" dos brasileiros.
"Nossa fixação por títulos e hierarquia é parte do
nossa herança portuguesa. As pessoas aqui querem ser vistas como diferentes,
como superiores aos outros, e não gostam de se misturar", diz ele.
Os turistas que vão para os grandes resorts em Porto Seguro
costumam fazer apenas passeios de um dia em Trancoso - onde dormir e comer
custa bem mais.
"Dá para ver que esse pessoal todo aqui hoje não é de
classe A e B. Tem muita gente de classe C já vindo para cá," diz a
jornalista Ana Campolino. “Dá para ver pelas roupas, pelos hábitos, pelo lugares
que frequentam."
Desconforto
Uma pesquisa realizada pelo Data Popular dá algumas noção do
desconforto sentido pelas classes mais elevadas, que agora tem que compartilhar
alguns espaços.
De acordo os números, 48,4% dos entrevistados disseram que
"a qualidade dos serviços piorou, agora que eles são mais acessíveis"
e 49,7% disseram que preferem lugares "com pessoas de mesmo nível
social."
"Decidimos fazer essa pesquisa quando começamos a
perceber as pessoas reclamando, por exemplo, sobre os aeroportos, que estão
muito mais lotados agora. E nossas pesquisas têm mostrado que há uma
resistência muito forte das classes superiores em aceitar os
recém-chegados", diz o presidente do Data Popular, Renato Meirelles.
Meirelles diz que a tensão só será resolvida quando o Brasil
estiver preparado para oferecer esses serviços com qualidade para todos os seus
cidadãos. "Os aeroportos, por exemplo, estão lotados para todo mundo. Se
houvesse bastante espaço para todos as tensões, começariam a desaparecer."
Preconceito
Já os turistas de classe mais alta e empresários do setor
negam a existência de qualquer "tensão" entre a velha e a nova classe
média. Um porta-voz do Sindicato da Hotelaria de Porto Seguro e Região, Paulo
Cesar Magalhães, diz que "há espaço para todos".
"Naturalmente os turistas vão para áreas que tenham a
ver com seu perfil. Aqui no distrito-sede de Porto Seguro, onde há mais hotéis
e restaurantes, há mais opções para as pessoas com um orçamento mais baixo. As
praias mais distantes são as melhores opções para quem pode gastar mais
dinheiro", diz ele.
Magalhães diz que, do ponto de vista das empresas, Porto
Seguro não tem nada a reclamar sobre os novos clientes. "Para muitas
pessoas este é um momento mágico, a primeira oportunidade de viajar pelo Brasil
e toda esse deslumbramento acaba traduzido em gastos na nossa cidade", diz
ele.
Se a economia do Brasil continuar a crescer a indústria do
turismo deve seguir pelo mesmo caminho e com a nova classe média também
viajando cada vez mais.
"Há preconceito, claro. Mas agora eu estou aqui e eles
vão ter que me engolir", diz Osmar Ferreira no meio de uma gargalhada.
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