Katarina Peixoto (*)
A foto de Dilma Rousseff sendo interrogada por funcionários
da ditadura tem se prestado a várias leituras. A cena dos dois homens
escondendo o rosto com a mão assemelha-se muito à imagem de criminosos
escondendo a face para não serem reconhecidos. Eles são autores de crimes que
definem a verdadeira impunidade que ainda precisa ser enfrentada no Brasil.
No dia 3 de dezembro, a revista Época publicou uma foto de
Dilma Rousseff sendo interrogada por delinquentes oficiais depois de 22 dias de
tortura. A foto é extraordinária sob muitos aspectos e um deles é a sua
expressividade como história, como fato histórico. Uma jovem altiva mira o ou
os interrogadores e dois dos delinquentes que participavam da barbárie
esconderam o rosto para o fotógrafo (a história desse ato fotográfico mereceria
por si só uma análise detida, não tanto da intenção do fotógrafo, mas da função
desse tipo de foto, numa ditadura, em sessões de interrogatório). Dilma, como
todos podem saber, foi torturada. Os torturadores de Dilma, não.
Essa foto tem sido objeto de algumas reflexões na imprensa
brasileira. Uma delas, assinada pelo jornalista Moisés Mendes, do jornal Zero
Hora (edição de 11/12/2011) chama a atenção por uma curiosa escolha de
palavras. Estabelecendo uma relação entre o período histórico da ditadura e a
foto de Dilma, o jornalista escreve:
“Éramos alienados, seu Mino. Jovens com o perfil de Dilma,
comunistas, democratas ou anarquistas, que provocaram o confronto com o regime
com suas próprias vergonhas, eram quase todos da minoria da militância estudantil.
Só leve a sério quem aparecer contando vantagem, com histórias de resistência e
bravura naquele 1970, se conhecer sua trajetória.
A foto de Dilma no interrogatório não é a síntese da
juventude brasileira de quatro décadas atrás. É apenas a foto de uma moça
destemida diante de dois homens torturados pela desonra”. (ver íntegra do
artigo no final)
Torturados pela desonra? A cena dos dois homens escondendo o
rosto com a mão assemelha-se muito à imagem de criminosos escondendo a face
diante das lentes de uma máquina fotográfica ou de uma câmera de televisão.
Considerando o período histórico e o contexto da cena, parece muito mais plausível
que a tentativa de esconder o rosto tenha pouco a ver com um “sentimento de
desonra” e tudo a ver com um gesto com um objetivo bem definido: não ser
identificado. Os criminosos, em geral, não gostam de ser identificados.
A possibilidade de os torturadores sentirem-se envergonhados
obviamente não está descartada; seria nada mais que uma possibilidade e,
enquanto tal caberia averiguar. Uma das dificuldades para que isso ocorra é
que, no Brasil, os torturadores nunca se disseram envergonhados, sequer assumiram
o que fizeram e menos ainda foram punidos. Como não bastasse, os arquivos em
que seus delitos estão registrados foram ou destruídos ou sonegados da
cidadania brasileira e assim seguem, mesmo quase trinta anos após o fim da
ditadura. A ocultação dos torturadores, dos seus atos e de suas personalidades
de direito torna impossível averiguar a sua vergonha.
De fato, em termos jurídicos, um crime imprescritível (como
o são os crimes contra a humanidade, dentre eles a tortura), uma vez não
investigado, processado e punido se constitui como crime continuado. Assim, não
há qualquer obstáculo jurídico ou lógico para se atribuir aos delinquentes que
torturaram, entre outros, a atual presidente democraticamente eleita do Brasil
o adjetivo que lhes é devido: criminosos contra a humanidade.
Aqui aparece um ponto que parece ser decisivo para as
leituras da foto em questão. O Estado brasileiro, até hoje, não reconheceu que
foi autor de crimes no período da ditadura. Não se trata apenas de reconhecer
crimes contra o marco constitucional da época. Um governo eleito foi derrubado
por alguns setores civis e militares, num movimento autoritário que feriu de
morte o marco constitucional da época. Além desse crime, outros foram
praticados: prisões arbitrárias e ilegais, demissões arbitrárias do serviço
público e de empresas, perseguições, sequestros, torturas,
assassinatos...Crimes cometidos por agentes de um estado de exceção.
Neste contexto, os interrogadores de Dilma escondem o rosto
não porque estão “torturados pela desonra”, mas porque, objetivamente,
pertencem a uma organização criminosa que tomou de assalto o Estado brasileiro.
O fato de isso não ser reconhecido por um jornalista sério mostra o quanto o
Brasil precisa acertar as contas com sua própria história.
Os crimes praticados por criminosos que até hoje insistem em
esconder seus rostos continuam sem inquérito, sem processo, sem acusação, sem
defesa, sem julgamento. Os torturadores não têm vergonha alguma pelo simples
fato de que eles, institucionalmente, isto é, como membros do aparato de
segurança e das forças armadas, jamais confessaram seus crimes.
E se o Brasil tivesse aberto os arquivos da ditadura
civil-militar que se seguiu ao golpe de estado de 1964? E se as famílias dos
supliciados e desaparecidos tivessem tido acesso aos corpos de seus entes
familiares, bem como às condições de seu assassinato?
Os delinquentes que participaram do interrogatório da jovem
Dilma Rousseff, depois de esta passar por 22 dias de tortura, por acaso foram
investigados e padeceram como acusados sem inquérito, tiveram os seus corpos
supliciados e as suas subjetividades invadidas pela brutalidade da violação
física e mental de que se faz a tortura? Há alguma confissão inconfessa ao
público, em que algum torturador teria incorrido?
As dificuldades e resistências em reconhecer que o Estado
foi autor de crimes só reforçam a importância de uma Comissão da Verdade, que
traga à luz os rostos que até hoje tentam se esconder e os fatos que até hoje
permanecem escondidos. Há um jargão (distorcido) que costuma ser repetido à
exaustão que consiste em dizer que “o Brasil é o país da impunidade”. As nossas
prisões estão abarrotadas e todos sabem qual é o perfil de seus habitantes. A
impunidade no Brasil aplica-se, sobretudo, aos chamados crimes de colarinho
branco, mas a mãe de todas as impunidades é a que até hoje está encravada no
coração do Estado. Os crimes cometidos pelo Estado brasileiro, como o da
tortura, permanecem impunes e, mais do que isso, sendo reproduzidos em peças
policiais obscuras que também escondem o rosto.
Por isso, também, seria importante que Dilma determinasse a
abertura dos arquivos da ditadura militar. Mais do que pela autoridade moral de
ter sido vítima da ação dos delinquentes torturadores e assassinos; mais do que
pela sua subjetividade e decência, mais do que pelo respeito que ela tem pelos
que ficaram pelo caminho, pelos que foram subtraídos, até em seus restos
mortais, de seus familiares, ela pode abrir os arquivos. Para além da confusão
gerada e reproduzida pela lei da anistia, é importante abrir esses arquivos
para acabar com as mentiras históricas, até quando cometidas por gente séria,
em conotações equívocas e que dão guarida à falsidade na descrição do que se
passou.
(*) O jornal Zero Hora só disponibiliza os links dos textos
de sua edição impressa para assinantes. Segue abaixo o artigo em questão:
11 de dezembro de 2011 | N° 16914
A foto de Dilma, por Moisés Mendes
Enquanto alguém fotograva Dilma Rousseff naquele
interrogatório da Auditoria Militar do Rio, você fazia o quê? Você que era
jovem, com idade para duelar com a ditadura e cometer loucuras em nome da
democracia ou de uma revolução, o que você fazia naquele novembro de 1970
enquanto Dilma encarava os militares com o nariz empinado e você nem sabia que
Dilma existia?
Admita: você, seus irmãos, seus colegas, seus vizinhos não
faziam quase nada. Eu confesso: tinha 17 anos, dormia escutando as baladas da
Rádio El Mundo de Buenos Aires e acordava pensando no milagre que eliminaria
minhas espinhas da cara. Como nos empurraram para a alienação naquele 1970, em
Alegrete ou em Porto Alegre!
E agora você, que tem hoje a idade de Dilma em 1970, que tem
22 aninhos, que já postou mais de mil fotos suas no Facebook: você já tem uma
foto síntese como aquela de Dilma? Tem a imagem que revele sua alma, que
dispense legendas, que esteja para você como a Mona Lisa está para todas as
mulheres e como a Guernica de Picasso está para todas as guerras? Você tem uma
imagem que tenha condensado tudo de você?
Se ainda não produziu a foto reveladora de sua presença
neste mundo, não se penitencie. A foto de Dilma é única. Não acredite na
conversa de que todos os jovens daquele 1970 enfrentavam a ditadura com o olhar
de laser de Dilma. Os jovens de 1970 estavam anestesiados por quatro anos de
regime militar, pelo Tri no México, pela censura.
A edição número 115 de Veja, de 18 de novembro daquele 1970,
trazia esta capa: Em quem os jovens votaram. A reportagem tratava de uma
pesquisa com mil jovens de 18 a 22 anos, de São Paulo, Rio, Porto Alegre e Recife,
que votavam pela primeira vez no dia 15 daquele mês para eleger senadores e
deputados.
Algumas revelações da pesquisa: 52% não sabiam por que os
militares fizeram o golpe de 64; outros 25% disseram que o golpe evitara o
comunismo; 71% achavam que o povo estava feliz com a situação do país; 51% dos
jovens gaúchos votariam na Arena (o partido do governo) e 44% no MDB (da
oposição); e 55% de todos os pesquisados no país votavam “por obrigação” (só
10% entendiam que votar era um direito). E quem tinha sido Oswaldo Aranha? 83%
não tinha a menor noção. E qual seria a nota para o presidente Médici? Um 8,4.
E assim por diante.
Na eleição, de 70, o MDB levou uma lambada de dois votos por
um da Arena. A Arena elegeu 41 senadores e 223 deputados federais. O MDB,
apenas seis senadores e 87 deputados. No Estado, Daniel Krieger e Tarso Dutra,
arenistas, foram eleitos senadores com o dobro de votos dos emedebistas Paulo
Brossard e Geraldo Brochado da Rocha.
Foi uma goleada do partido do governo, com o voto faceiro
dos jovens. Vão dizer que havia a campanha do voto nulo, que o país ainda
estava confuso, que faltava coesão ao MDB, aos democratas e às esquerdas. Nessa
confusão, os jovens eram, como escreveu Mino Carta, o diretor de Veja, “pouco
politizados, muito práticos e eventualmente ingênuos”.
Éramos alienados, seu Mino. Jovens com o perfil de Dilma,
comunistas, democratas ou anarquistas, que provocaram o confronto do regime com
suas próprias vergonhas, eram quase todos da minoria da militância estudantil.
Só leve a sério quem aparecer contando vantagem, com histórias de resistência e
bravura naquele 1970, se conhecer sua trajetória.
A foto de Dilma no interrogatório não é a síntese da
juventude brasileira de quatro décadas atrás. É apenas a foto de uma moça
destemida diante de dois homens torturados pela desonra.
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