Inimigos de Kadafi eram seus aliados até muito pouco tempo atrás. O que mudou? |
WikiLeaks traz à baila documentos da diplomacia americana
que demonstram como os Estados Unidos são capazes de mudar suas posições
repentinamente de acordo com interesses rasteiros e contestáveis, embora
ignorados por uma imprensa que finge fazer jornalismo. Para os EUA, Líbia era
modelo de combate ao terrorismo - Pragmatismo Politico
Inimigos de Kadafi eram seus aliados até muito pouco tempo
atrás. O que mudou?
O modo como o governo líbio lidava com a ameaça da
emergência de grupos islâmicos radicais era visto como modelo pela mídia
internacional e também pela embaixada norte-americana em Trípoli. Tal opinião é
parte de um telegrama enviado pela missão diplomática na Líbia em 9 de dezembro de 2009 e vazado pelo site
Wikileaks em 26 de junho de 2011.
No despacho, Joan Polaschik, uma das diplomatas
norte-americanas na Líbia, destaca o lançamento de um documento religioso de
417 páginas por seis membros do GIAL (Grupo Islâmico Armado Líbio). Nele, eles
renunciavam ao uso da violência, passando a ditar uma nova interpretação da
jihad em terras líbias.
Para os líderes envolvidos na confecção do texto, entre eles
Abu Abd Allah al Sadiq (emir do GIAL) e Abu al Munder al Saidi (autoridade na
sharia – código de conduta baseado no Alcorão), os erros na interpretação do
Islã eram fruto da "ignorância sobre a lei" e denotavam ausência de
"ulamas" (acadêmicos religiosos, responsáveis por ensinar a correta
interpretação da sharia).
A iniciativa pacifista foi resultado de uma negociação entre
líderes do GIAL e Saif al Islam Kadafi, filho do ditador Muamar Kadafi, com
apoio do serviço secreto líbio. Em troca da renúncia à violência, foi acordada
a libertação de 200 integrantes do grupo.
No conteúdo do documento religioso, escrito em setembro de
2009, os líderes do GIAL condenam a morte de mulheres, crianças, idosos,
monges, mercadores e outros em suas ações. De acordo com a nova diretriz,
"seria um atalho e um erro" reduzir a jihad a uma luta com a espada.
A recomendação é endereçada "às organizações que, algum dia, tiveram
alguma ligação conosco". É um recado direto à Al Qaeda.
De acordo com o despacho norte-americano, as negociações
entre Saif al Islam e o emir al Sadiq duraram cerca de dois anos. A ideia era
lançar o documento religioso em 23 de agosto de 2009, início do Ramadã (período
sagrado do Islã) e aniversário de 40 anos da subida do regime Kadafi ao poder.
Logo após o anúncio do acordo, foram libertados 91 militantes. Outros 43
membros teriam sido soltos no mês seguinte, em outubro. Esses 134 libertados
seriam metade dos integrantes do GIAL presos na prisão de Abu Salim.
Porém, segundo a diplomata norte-americana, a iniciativa do
governo líbio em relação ao GIAL foi vista com reservas dentro e fora do país.
Poucos acreditavam no sucesso do plano. Para Joan Polaschik, em curto prazo, o
acordo fortalecia o regime de Kadafi como um todo e a influência de Saif al
Islam em especial. Acima de tudo, deveria ser endossada como uma maneira nova
de lidar com o terrorismo islâmico.
Em outro telegrama, enviado por John Stevens em 7 de
novembro de 2007, há mostras do temor de Kadafi sobre a insurgência de
movimentos extremistas e terroristas na Líbia, com prejuízo para as atividades
econômicas no país. Em 3 de novembro de 2007, Ayman al Zawahiri, então número
dois na hierarquia da Al Qaeda, anunciou a junção de forças entre a Al Qaeda e
o GIAL para confrontar o governo Kadafi.
Na época, o governo relutou em comentar o anúncio de Al
Zawahiri e temia a repercussão dessa união dos dois grupos entre a população
líbia. Ela pode
ria causar muita violência e transformar a oposição política
do GIAL em trampolim para ações de grupos terroristas no país.
Um membro de uma tribo influente em Bengazi disse que as
reações ao anúncio da junção entre Al Qaeda e GIAL na Líbia "variaria de
acordo com a sua posição socioeconômica".
Para esse líder tribal, a mensagem de Al Zawahiri iria encontrar apoio
entre aqueles não beneficiados pela liberalização e o desenvolvimento
econômico. Para essas elites, seria fundamental proteger seus "feudos
econômicos" em caso de uma arrancada dos grupos extremistas para derrubar
Kadafi do poder.
Muitos viam essa alternativa com bons olhos: principalmente
os muçulmanos mais radicais, desejosos do estabelecimento de um "califado
muçulmano" na Líbia e também por esperar que "qualquer outro regime
fosse menos opressivo que a ditadura de Kadafi". As classes médias temiam
um retrocesso econômico e uma piora no acesso a bens de consumo, além de
sanções ocidentais em caso da subida de um governo apoiado pelo GIAL e a Al
Qaeda.
Stevens encerra o telegrama dizendo que a situação política
na Líbia parece "um filme em slow motion". E pergunta: até que ponto
o entusiasmo por um radicalismo islâmico tem a ver com uma afinidade religiosa
genuína? E onde começa a insatisfação com o regime de Kadafi?
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