A literatura, sendo a menina dos olhos da cultura, deve ser
defendida da invasão dos negros; é o que ridicularmente pretende Ferreira
Gullar
Por conta da publicação, em quatro volumes, da Literatura e
Afrodescendência no Brasil: antologia crítica, organizada pelos professores
Eduardo de Assis Duarte e Maria Nazareth Fonseca, seja pela apresentação gráfica
sofisticada da obra, seja pelo seu aporte crítico envolvendo profissionais de
diversas universidades brasileiras e estrangeiras, a questão de ser ou não ser
negra a vertente da literatura brasileira que compõe seu conteúdo tem trazido à
tona manifestações que vão desde respeitosas e aprofundadas abordagens até
esdrúxulos pitacos de quem demonstra sua completa ignorância do assunto, má
vontade e racismo crônico. Neste último caso está o que publicou Ferreira
Gullar, com o título "Preconceito cultural", no caderno Folha
Ilustrada, do jornal Folha de São Paulo, de 04/12/2011.
O autor do Poema Sujo, no qual compara um urubu a um negro
de fraque, deve estar estranhando (estranheza é a palavra que ele emprega) que
o negro não é uma simples idéia desprezível, mas um imenso número de pessoas,
cuja maior parte, hoje, não come carniça, e que aqueles ainda submetidos à
miséria mais miserável jamais quiseram fazer o trabalho daquela ave, e que se a
"a vasta maioria dos escravos nem se quer aprendia a ler", como diz
ele, não é porque não queria. Era proibida. Há vários dispositivos legais e
normas que comprovam isso. Havia uma vontade contrária. Há e sempre houve um
querer coletivo negro de revolta contra a opressão racista.
Quanto a existir ou não literatura negro-brasileira,
deixemos de hipocrisia. No mundo da cultura só existe o que uma vontade
coletiva, ou mesmo individual, diz que sim e consegue vencer aqueles que dizem
não. Foi assim com a própria literatura brasileira e os tantos ismos que por
aqui deixaram seus rastros. Características, traços estilísticos, vocabulário
etc, que demarcam a possibilidade de se rotular um corpus literário, no tocante
à produção literária negra, já vem sendo estudados. Basta lembrar três
antologias de ensaios: Poéticas afro-brasileiras, de 2002, com 259 páginas;
A mente afro-brasileira (em três idiomas), de 2007, com 577
páginas; Um tigre na floresta dos signos, de 2010, com 748 páginas, além de
outras reuniões de textos, estudos, dissertações e teses. Por outro lado, se
Cruz e Sousa e Machado de Assis, como argumenta Gullar "foram herdeiros de
tendências literárias européias", e, portanto, "não se pode afirmar
que faziam literatura negra", o que dizer de Lépold Senghor e Aimé
Césaire, principais criadores do Movimento da Negritude, embora herdeiros da tradição
literária francesa? A literatura não é só resultado de si mesma. Só uma
perspectiva genética tacanha desconheceria outras influências do texto
literário, tais como a experiência existencial do autor, sua formação política
e ideológica, o contexto social, entre tantas mais. Nenhum escritor é obrigado
a reproduzir suas influências.
A maneira como o tal poeta cita o samba, a dança, o
carnaval, o futebol é aquela que simplesmente aponta o "lugar do
negro" que o branco racista determinou, um lugar que serviu de
"contribuição" para que os brancos ganhassem dinheiro, não só
produzindo sua arte a partir do aprendizado com os negros, mas também
explorando compositores diretamente e calando-os na sua autoafirmação étnica.
Basta inventariar quantos grandes compositores negros morreram na miséria. A
essa realidade o poeta chama de: "nossa civilização mestiça". Mas,
pelo visto, a literatura, sendo a menina dos olhos da cultura, deve ser
defendida da invasão dos negros. O escritor e crítico Afrânio Peixoto, lá no passado,
deixou a expressão bombástica sobre a literatura ser "o sorriso da
sociedade". Gullar não pensa isso, com certeza, mas em seus pobres
argumentos está a ruminar que a literatura não pode ser negra. Talvez sinta que
a negrura pode sujá-la, postura bem ainda dentro do diapasão modernista que
abordou o negro pelo viés da folclorização.
A esquerda caolha e daltônica brasileira sempre se negou a
encarar o racismo existente em nosso país. Por isso andou e anda de braços e
abraços com a direita mais reacionária quando se trata de enfrentar o assunto.
Para ela, a mesma ilusão dos eugenistas, tipo Monteiro Lobato, se apresenta
como verdade: o negro vai (e deve) desaparecer no processo de miscigenação.
Para alguns cristinhos ressuscitados dos porões da ditadura militar e seus
seguidores sobreviveria e sobreviverá apenas o operariado branco. Concebem isso
completamente esquecidos de que a cor da pele e traços fenotípicos estão
inseridos do mundo simbólico, o mundo da cultura. No seu inconsciente, o
embranquecimento era líquido e certo, solução de um "problema". Hoje,
é provável que os menos estúpidos já tenham se deparado com as estatísticas e
ficado perplexos. Gullar, pelos seus argumentos, se coloca como um
representante da encarquilhada maneira de encarar o Brasil sem a participação
crítica do negro. E, como é de praxe, entre os encastelados no cânone literário
brasileiro, incluindo os críticos, não ler e não gostar é a regra. Em se
tratando de produção do povo negro, empinam e entortam ainda mais o nariz. Devem
se sentir humilhados só de pensar em ler o que um negro brasileiro escreveu e,
no fundo, um terrível medo de verem denunciado o seu analfabetismo relativo a
um grave problema nacional: o racismo, ou serem levados a cuspir no túmulo de
seus avós.
Gullar diz ser
"tolice ou má-fé" se pensar um grande público afrodescendente como
respaldo da produção literária negra. Será que ele algum dia teve em seu
horizonte de expectativa o leitor negro? Certamente não, como a maioria dos
escritores brancos. Isso, sim, é tolice, má-fé e, cá entre nós, uma sutil forma
de genocídio cultural, próxima daquela obsessão de se matar personagens negros.
E não adianta nesse quesito invocar um parente mulato como, em outros termos,
fez o imbecil parlamentar racista Bulsonaro.
Antonio Cândido, em entrevista publicada na revista Ethnos
Brasil, em março de 2002, com o título "Racismo: crime ontológico",
fazendo sua autocrítica relativa à sua omissão, por muito tempo, do debate
sobre a questão racial, argumenta que o "nó do problema" estaria
"no aspecto ontológico", e prosseguindo: "está no drama, para o
negro, de ter de aceitar uma outra identidade, renegando a sua para ser
incorporado ao grupo branco." Façamos um acréscimo ao que disse o
consagrado mestre. A questão racial é um problema ontológico no Brasil porque
diz respeito também ao ser branco, pois o debate sobre o problema enfrenta a
ilusão da superioridade congênita do branco, que o racismo insiste em manter
cristalizada na produção intelectual brasileira. Ele, o branco, tem o drama de
ser forçado a aceitar uma outra identidade que não aquela de superioridade
congênita que o racismo lhe assegurou, de ser obrigado pelo debate a
experimentar a perda da empáfia da branquitude, descer do salto alto. Aliás, o
sociólogo Guerreiro Ramos nos legou um ensaio elucidativo do assunto,
intitulado "A patologia social do branco brasileiro".
A produção intelectual não é tão somente uma exclusividade
de brancos racistas, apesar de certa hegemonia ainda presente. Além de brancos
conscientes da história do país, negros escrevem, publicam livros e falam não
só de si, mas também dos brancos, dos mestiços e de todos os demais
brasileiros. Quem não leu e não gostou dessa produção, em especial a do campo
literário, já não está fazendo tanta diferença. A crítica binária, baseada no
Bem X Mal, está enfraquecida. Um dos propósitos de seus defensores quando
pensam negros escrevendo é o de tirar o entusiasmo dos filhos e dos netos
daqueles que por muitos séculos lhes serviram a mesa e lhes limparam o chão e
mesmo daqueles que ainda o fazem. A vontade coletiva negra está em expansão e
não é só no campo literário. Assim, quando o poeta Ferreira Gullar diz que
falar em literatura negra não tem cabimento, é de ser fazer a célebre pergunta:
"Não tem cabimento para quem, cara-pálida?" A sua descrença no que
chama de "descriminação" na literatura, crendo que ela não "vá
muito longe" e gera "confusão" é o simples reflexo da baixa
expectativa de êxito que a maioria dos brancos tem em relação aos negros,
resultado dos preconceitos inconfessáveis, passados de geração para geração,
para minar qualquer ímpeto de autodeterminação da população negra.
Para Aristóteles havia os gregos e o resto (os bárbaros). O
branco brasileiro precisa superar este complexo helênico de pensar que no
Brasil há os brancos e o resto (mestiços e negros). Tal postura é uma das
responsáveis pelo descompasso da classe dirigente em face da real população.
Certamente, essa é a razão de Lima Barreto, o maior crítico do bovarismo
brasileiro, ainda ser muito pouco ensinado em nossas escolas. O daltonismo de
Ferreira Gullar, advindo de um tempo de utopia socialista, hoje é pura
cegueira. Traços físicos que caracterizam historicamente os negros não são só
traços físicos, como quer o articulista, mas representações simbólicas, por
isso perfeitamente suscetíveis de gerar literatura com especificidades. Se o
poeta não concebe negros possuidores de consciência crítica no país e as
históricas particularidades de sua gente, devia fazer a sua autocrítica e não
insistir na cegueira.
Não dá mais para negar que a classe C está disputando também
assentos no vôo literário, além dos bancos de universidades, nos shoppings e
outros espaços sociais. E a população negra também faz parte dela. Quem não
quiser enxergar vai continuar vivendo embriagado por esta cachaça genuinamente
brasileira, produzida nos engenhos decadentes: o mito da democracia racial.
Pena que alguns, de tão viciados, não largam a garrafa.
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