A Memória recobra sua história. A Ditadura e seus fósseis
vivos. Uma análise dos acontecimentos na USP em 2011.
por Ana Paula Salviatti
O contexto vivido atualmente na Universidade de São Paulo no
qual estudantes reivindicam a saída da PM do campus é um flagrante
desdobramento do período militar que recobra sua parcela por não ter sido
resgatada sua Memória e nem sido escrita a História deste período. Tal lacuna
possibilita a muitos a compreensão de posturas tomadas pelos estudantes
contrários à presença da PM no campus como anacrônicas. Diante do esvaziamento
crítico que se chegou devido à negação que é feita da memória deste período,
tal anacronismo não se apresenta entre estes estudantes, mas sim presente na
estrutura da Universidade que não mudou desde a ditatura e na memória esvaziada
daqueles que observam pouco as raízes da história do país. Mas tal fenômeno não
se restringiria apenas aos muros da Universidade.
Tido isto, o debatido papel da Polícia Militar emerge como
um fóssil vivo do período militar, ao invés de um entulho, um objeto em desuso
enferrujado, a corporação trabalha plenamente visando garantir o aparelho do
Estado, no monopólio da violência, o qual continua torturando, matando, entre
outras atividades que são de conhecimento comum da PM de São Paulo, Rio de
Janeiro e outros Estados.
Ao resgatarmos a Memória da Ditadura encontramos em meio à
História o atual Reitor da USP, João Grandino Rodas. Entre 1995 e 2002 Rodas
integrou a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, estando
diretamente ligado à comissão que apurou a morte de alguns militantes políticos
dentre eles a estilista Zuzu Angel, morte na qual os militares foram
inocentados. Enquanto Diretor da Faculdade de Direito, Rodas foi o primeiro
administrador a utilizar o aparato
policial, ao requisitar, ainda na madrugada do dia 22 de agosto de 2007, a
entrada de 120 homens da Polícia Militar inclusive da tropa de choque para a
expulsão de manifestantes que participavam da Jornada em Defesa da Educação, na
qual estavam presentes representantes da União Nacional dos Estudantes (UNE),
do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), de estudantes e membros
de diretórios acadêmicos os quais foram fichados e levados à delegacia, com um
tratamento ofensivo em especial
aos militantes dos movimentos populares.
Também foi Grandino Rodas que ainda na gestão do Governador
José Serra lavrou o documento que viabilizava a entrada da PM no campus no ano
em 2009. Durante sua administração na Faculdade de Direito tentou sem sucesso a
implementação de catracas para impedir o acesso de gente “estranha” ao prédio
da instituição. Em seu último dia na Direção da Faculdade de Direito, Rodas
assinou atransferência do acervo da biblioteca para um prédio próximo a
Faculdade, o qual não possuía perícia para tanto, apresentava problemas com a
parte elétrica, hidráulica e inclusive com os elevadores. Tudo isso feito sem
consultar se quer o corpo burocrático da Faculdade.
Ainda durante a gestão do então Governador José Serra,
Grandino Rodas foi escolhido Reitor da USP através de decreto de 13/11/2009.
Seu nome era a segunda opção de uma lista de três indicações. Remonta a
história que a última vez que um Governador se utilizou de tal dispositivo
criado no período militar–presente na legislação do Estado de São Paulo até
hoje– foi durante o Governador Biônico, Paulo Maluf que indicou Miguel Reale
para reitoria da Usp entre os anos de 1969 e 1973.
Alunos como Patrícia (nome fictício) têm sido processados
administrativamente pela Universidade de São Paulo com base em dispositivos
instituídos no período militar, no seu processo consta que a aluna agiu contra
a moral e os bons costumes. Dispositivos como estes foram resgatados pela
Universidade, esta sim anacrônica. Há 60 dias Grandino Rodas assinou um
convênio com a Polícia Militar para que esta pudesse entrar na Universidade.
Rodas também recebeu o título de persona non grata por unanimidade na Faculdade
de Direito, a qual apresenta uma série de denúncias contra a gestão do então
Diretor, acusando-o, entre outros, de improbidade administrativa.
Recentemente um novo ocorrido, a princípio um incidente,
podia ser visto no campus ao ser lido na placa do monumento que está sendo
construído na Praça do Relógio a referência a “Revolução” de 64, forma como os
setores militares e dos que apoiaram o golpe militar se remetem ao período de
Ditadura vivido no Brasil.
Rodas também é atualmente investigado pelo Ministério
Público de São Paulo, dentre outros motivos, por contratação sem concurso
público de dois funcionários ligados ao gabinete da reitoria, sendo um deles
filho da ex-Reitora Suely Vilela, juntamente de denúncias de mau uso do
dinheiro público. E last but not least, Grandino recebeu a medalha de Mérito
Marechal Castello Branco da Associação Campineira de Oficinas da Reserva do
Exército (R/2) do NPOR do 28º BIB; Marechal este, não custa lembrar, o primeiro
presidente do Estado de Exceção vivido no país a partir de 1964.
Todas estas informações foram resgatadas. No entanto, muitas
outras lotam o Estado em todas as suas instituições, todos os dias graças ao
processo de abertura democrática do país que não cumpriu o seu papel de
resgatar a Memória e produzir uma História que reconfigurasse e restabelecesse
os acontecimentos do país, possibilitando a rearticulação das inúmeras
ramificações do Estado, como foi feito no Chile, Argentina e também mais
recentemente Uruguai.
A consciência dos cidadãos passa pelo tribunal da História
que, ao abrir as cicatrizes não fechadas, limpa as feridas ao falar sobre as
mesmas dando a cada um o que é lhe de direito. As diversas vozes que exclamam a
apatia nacional frente às condutas políticas sofrem deste mesmo mal, ao não
relembrarem que a História do país conduzida por “cima” não expulsou de si seus
fósseis, e sim os transferiu de cargo, realocou em outras funções. Os resgates
da imprensa são limitados as Diretas Já e ao Impeachment de 1992. Se a memória
que a mídia repõe é a mesma que se debate no cotidiano então nosso país sofre
de perda de memória e junto disso de uma profunda inaptidão crítica de suas
experiências dando assim, todo o respaldo ao comumente infundado senso comum.
Ao levantarmos o passado constata-se que o anacronismo não
está só nas inúmeras manifestações tidas no meio Universitário, no caso a USP,
mas em todas as vezes em que NÃO são cobertas pelo noticiário as inúmeras
reintegrações de posse feitas em comunidades carentes, nas manifestações que
exigem a reforma agrária, nas reivindicações que exigem moradia aos sem teto. O
anacronismo está presente nas inúmeras invasões sem mandado judicial que ocorrem
em todos os lugares onde a classe média não está, no uso comum de tortura pelas
Polícias Militares em um Estado que se reivindica Democrático, nos
criminalizados por serem pobres e negros, naqueles que são
executados como Auto de Resistência pelas Polícias Militares, e a lista segue.
Vive-se a modernização do atraso nas mais diversas formas e matizes.
O Tempo se abre novamente e aguarda o resgate da Memória e a
reconstrução da História. O país tem uma dívida a ser paga com seu passado, e
eis que finalmente, a Comissão da Verdade vazia de sentido ao ser apresentada
pelos inábeis veículos de informação ressurge agora preenchida e repleta de
sentido. Afinal, a História dos vencedores nega o passado dos vencidos, assim
como seu presente e consequentemente seu futuro.
Ana Paula Salviatti é historiadora formada pela USP, onde
faz atualmente mestrado em história econômica.
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