O projeto, agora, é varrer a “era Lula”, preferentemente
destruindo o político Lula, ainda que seja ao preço de destruir a democracia,
para poder destruir o que ele representa
O ponto de partida dessas reflexões é uma obviedade: a crise
dos partidos, que no Brasil não é maior nem menor do que a crise dos partidos
europeus e norte-americanos. No velho e exausto continente desapareceu a
esquerda socialista e os socialdemocratas se confundem com os conservadores, e
todos se afundam de braços dados na crise do capitalismo. Nos EUA, o
bipartidarismo tacanho é construtor de impasses institucionais, de que é
exemplo a negociação do teto da dívida. Em nosso país reproduz-se o
esgarçamento ideológico dos partidos de esquerda e é crescente a distância
entre a vontade do eleitor e o titular do mandato, construindo a falência do
sistema representativo, de que a desmoralização do Legislativo e da vida
parlamentar é exemplo acachapante. Ainda
no caso brasileiro, talvez nos separando da crise europeia, identificamos perigoso
desdobramento, a saber, a desconstituição da política, com a desmoralização do
seu fazer e o anúncio de sua desnecessidade.
Tira-se a política da vida democrática, fica o quê?
Tiram-se os partidos do processo político, fica o que?
Tirem-se os políticos da política, ficará o quê?
Ainda que a expressão golpe sugira putsch, ação rápida,
virada de mesa, os golpes-de-Estado são longamente preparados. A implantação do
Estado Novo foi gestada já nas entranhas do governo constitucional de 1934; o
golpe militar que culminou com o suicídio de Vargas e a posse de Café Filho, a
serviço da UDN e dos militares, foi longamente preparado pela grande imprensa
que também preparou a opinião pública para o golpe de 1964 que, na caserna,
começou a ser tramado pelo Gal. Denis (cf. suas memórias) no dia imediato da
posse de João Goulart.
De comum, na retórica dos golpistas, a denúncia da
corrupção, não como fenômeno em si, mas como doença sistêmica do Estado e,
agora, manipulada pelos partidos que ousam ocupar os cargos para os quais seus
representantes foram eleitos pela vontade da soberania popular. Foi igualmente o combate à corrupção que
construiu Jânio Quadros (“varre-varre vassourinha, a sujeira desse país”) e
Fernando Collor (o ‘caçador de marajás’), com os resultados conhecidos.
Vargas, homem probo, era acusado por Carlos Lacerda de
governar sentado sobre um “mar de lama”, que se revelou igual às ‘armas de
destruição em massa’ de Saddam.
Não afirmo que esteja em gestação um golpe-de-Estado (como
realmente esteve em 2005), mas digo que estão sendo criadas as condições
subjetivas que amanhã poderão tornar palatável um ataque ao sistema
democrático, como consequência natural da perseguida desmoralização dos
políticos, dos partidos, da democracia, da política e do Poder Legislativo.
A quem interessa essa desmoralização da vida pública,
afastando o cidadão da política, ao convencê-lo de que a corrupção é elemento
intrínseco ao fazer político?
Pode o sistema democrático-representativo conviver com a
demonização dos partidos?
Quando a imprensa reduz todos os problemas do país à
corrupção, e a apresenta como intrínseca à política – ameaçando a continuidade
do processo democrático –, ela está igualmente interditando o debate sobre as
questões centrais do país: a desfuncionalidade do regime capitalista.
No Brasil, a crise dos partidos atinge indistintamente
esquerda e direita. A esquerda renuncia ao papel finalístico de crítica ao
regime econômico, a direita ora se esconde sob o disfarce da socialdemocracia,
ora se transforma em porta-voz de uma imprensa sem compromissos com a
democracia e os interesses nacionais. É esta imprensa, todavia, que pauta a
vida política nacional.
No Brasil, ao invés de os partidos possuírem meios de
comunicação ou de utilizá-los em seu processo de vida, isto é, na batalha
ideológica, é a imprensa que possui partidos e nessa condição dita-lhes metas,
temas, ações e conspirações. Dessa forma a chamada “grande imprensa” articula a
oposição. A mesma imprensa que participou das operações de desestabilização do
governo Vargas e da preparação do golpe de 1964, por ela sustentado, é a mesma
que não consegue assimilar a emergência social e política das parcelas menos
aquinhoadas da população. Para essa imprensa preconceituosa, é insuportável as
ruas cheias de carros dirigidos por pobres e pobres superlotando os aeroportos.
E mais: é insuportável que seja essa gente, a gente do povo, quem esteja
decidindo as eleições no Brasil.
Fernando Henrique Cardoso, em um de seus inumeráveis
momentos de excepcional infelicidade, anunciou o fim da “era Vargas”,
prometendo realizar o que os militares não haviam logrado em 20 anos de
ditadura. Também não conseguiu. Mas a direita é renitente. O projeto, agora, é
varrer a “era Lula”, preferentemente destruindo o político Lula, ainda que seja
ao preço de destruir a democracia, para poder destruir o que ele representa, e
representou a frustrada experiência de João Goulart, donde a sentença de morte
executada no dia 1º de abril de 1964: a emergência das massas.
Mas, lamentavelmente, não é só isso, pois é inesgotável o
poço de preconceitos de nossas elites.
A Presidência da República foi sempre um posto reservado
“aos mais iguais”, os marechais, os generais, os grandes fazendeiros ou seus
representantes, os doutores. Mas eis que uma disfunção sistêmica permite a
eleição de um outsider: um operário, um líder sindical, de sobrenome Silva, sem
passagem pela academia, expulso pela seca do rincão mais profundo e pobre do
sertão nordestino. E… escandalizam-se os repórteres, um monoglota. Esse
intruso, além de eleger-se, se reelege, e, suprema humilhação, elege sua
sucessora. Nada obstante toda a resistência que provoca, Lula pode retornar ao
poder – este o grande temor da direita brasileira –, se não fisicamente, muito
provavelmente mediante um governo que seja a continuidade do seu.
Nesse ponto se dão as mãos o reacionarismo da grande
imprensa e a degenerescência cultural de grande parte da classe-média
brasileira: ambas desprezam o povo, nosso povo, o homem comum das ruas,
mestiço, trabalhador, a quem negam as qualidades de pioneiro e construtor. Por
isso, a elite brasileira quer ser branca, fisicamente europeia e culturalmente
norte-americana; depois de sonhar com Londres e Paris, construiu como meta de
vida passear na Disneylândia. Para essa elite, para essa classe-média, para
essa imprensa é insuportável a vitória do homem do povo, de um “Zé da Silva”.
Pois foi um Silva, nordestino (ainda mais um nordestino!) expulso de sua terra
pela inclemência do clima, que consertou o Brasil e refez a obra, a desastrada
obra de desconstituição do País, encetada pelo “príncipe” dos sociólogos
brasileiros, professor titular da orgulhosa USP.
É preciso, pois, demolir um sistema político que permite a
eleição de um Lula.
O ponto de partida é a destruição da política, depois da
desmoralização dos políticos e dos partidos. Como sabemos que é impossível
sustentar uma democracia sem políticos e sem partidos políticos…
Esta operação está em curso.
Nem mesmo os néscios de carteirinha supõem que a atual
campanha da grande imprensa tem por objeto a defesa dos interesses de nosso
povo ou de nosso país. Senão a desmoralização da política.
No Brasil, a liberdade de imprensa, que precisa ser a mais
ampla possível, limita-se à liberdade, sem responsabilidade, das grandes
empresas de comunicação, que expressam o pensamento único, não apenas em seus
editoriais (que ninguém lê), mas agora quase principalmente no noticiário, seja
nacional seja internacional (repertório das grandes agências), nas reportagens
e no pensamento de seus colunistas e colaboradores. Estes são escolhidos ou por
partilharem do pensamento patrão, ou por a ele se haverem adaptado para serem
colunistas. E nesta hipótese, serviçais, procuram ser mais realistas do que o
próprio rei.
Não sejamos injustos, porém, atribuindo esse discurso único
e a cantilena reacionária exclusivamente ao mando dos interesses do baronato da
grande imprensa: ela é alimentada, cevada, por uma geração de jornalistas e
repórteres fiel a essa forma unilateral de ver o mundo. Para essa gente a
defesa dos interesses do país é um arcaísmo, a especulação financeira um sinal
de modernismo, a concentração de renda o caminho do desenvolvimento, a
política, um entrave, a democracia, um “detalhe”.
Um de seus subprodutos é o denuncismo gratuito,
irresponsável, a acusação que primeiro se faz, para depois perquirir a prova. O
denunciado é condenado já pela simples denúncia, sem possibilidade de reparação
pública. Se amanhã a acusação não se comprova, azar.
Nos recentes tempos da recente ditadura seus opositores
eram, primeiro demitidos, presos, torturados e muitas vezes “desaparecidos”,
para depois serem processados e em alguns casos até “absolvidos”. Vencido o
terrorismo militar, os políticos são expostos à execração da opinião pública,
eviscerados em sua intimidade política, e ao fim destruídos eleitoralmente,
depois de assassinados moralmente, culpados ou não. A regra é a mesma: primeiro
a pena, depois o julgamento.
Se, por um lado, é plenamente respeitada e garantida a
liberdade de imprensa, por qualquer de seus meios, falta ao povo a liberdade de
informação ou o direito à informação isenta.
Faltam-nos meios de obter outras visões da mesma realidade, de uma análise
crítica das questões nacionais e internacionais, e qualquer tentativa de
alterar o lamentável quadro vigente é, de forma alarmante, noticiada pelas
empresas de comunicação como ameaça à liberdade de imprensa.
Ainda sob os efeitos das vitórias de Lula, alcançadas sob o
tiroteio implacável de uma imprensa unanimemente opositora, os partidos de
esquerda tendem a subestimar o papel ideologicamente corrosivo exercido pela
grande imprensa – rádios AM, televisão, jornais e revistas — exercem sobre as
cabeças e mentes dos brasileiros.
Nenhum comentário:
Postar um comentário