Os que cometeram crimes de lesa-humanidade, crimes de
tortura, de desaparecimentos forçados, de mortes, em nome do Estado, estão
impunes até hoje. Desenterrar o passado, portanto, lhes causa medo
reencontrar seu filho desaparecido na ditadura
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A pernambucana Elzita Santa Cruz (foto ao lado), de 97 anos,
não muda de casa nem de telefone porque acredita que a qualquer momento chegará uma notícia
sobre o filho Fernando, desaparecido aos 25 anos, na ditadura militar. Prêmio
Nacional de Direitos Humanos da Presidência da República por causa de sua luta,
Elzita declarou apoio eleitoral à presidenta Dilma Rousseff em 2010. Na época,
escreveu à candidata que Lula avançou pouco, mas tinha a “certeza” de que ela,
eleita, não pouparia esforços para descobrir o paradeiro dos desaparecidos
políticos do País.
A paraibana Luiza Erundina, de 77 anos, deputada federal
pelo PSB, é uma das mais firmes referências nacionais na luta pela redemocratização
do Brasil. Mas embarga a voz quando lembra de dona Elzita. Erundina está
convencida de que o governo Dilma não dará conta da expectativa da amiga
pernambucana. “Temo que esse arremedo de Comissão da Verdade e as meias
verdades, que ela eventualmente possa apurar terminem acabando com a causa e o
ânimo das pessoas.” As pessoas vão morrendo e as memórias, quando não
preservadas, se apagam.
Erundina conta que se entristece porque toda a luta das
donas Elzitas não foi suficiente para que o Brasil criasse mecanismos que
impeçam essa história de se repetir, seja como farsa, seja como tragédia. Nem
de fazer realmente sua democratização. “Aqueles que patocinaram a ditadura
ainda estão no poder.”
Confira a excelente entrevista concedida a revista
CartaCapital:
CC: O Brasil terá uma Comissão da Verdade ou da Meia
Verdade?
Luiza Erundina: Se o projeto aprovado na Câmara se mantiver
nos mesmos termos, não há perspectivas de um resultado concreto ou justo em
relação aos crimes e aos responsáveis por eles na ditadura. É insuficiente e
inadequado. Por exemplo, o prazo das investigações, de 1946 a 1988, é muito
amplo, pega desde a ditadura Vargas. E para apenas sete integrantes
investigarem em dois anos. Os membros são escolhidos pela presidenta, sem
nenhum mecanismo de consulta. A comissão não tem autonomia orçamentária, é totalmente
subordinada à Casa Civil. Prevê a possibilidade de militares integrarem a
comissão. E não se conseguiu mudar a interpretação da Lei da Anistia. Então não
será feita Justiça.
CC: E há a condenação da Corte Interamericana…
LE: Sim. Em 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos
da OEA, no julgamento do caso da Guerrilha do Araguaia, condenou o Brasil a uma
série de medidas de investigação, identificação dos responsáveis e da memória e
da verdade sobre os crimes e exigiu, entre outras coisas, que a Lei da Anistia
tenha outra interpretação. Na interpretação da OEA, a Lei da Anistia, de 1979,
afetou o dever do Estado de investigar e punir. Então, a Ordem dos Advogados do
Brasil entrou com uma ação no STF, requerendo um parecer nos termos exigidos pela
OEA. E o STF decidiu, no fim de 2010, pela manutenção da interpretação atual.
Deputada luta pela aprovação de uma Comissão justa
CC: A senhora tem um projeto na Câmara para mudar isso, não?
LE: Sim, porque, como a lei atual está, mesmo que essa
Comissão da Verdade venha a descobrir provas de assassinatos, os criminosos
ficarão impunes, por causa da interpretação do STF. E o projeto de lei do
governo Lula, apresentado em maio de 2010, para criar a Comissão da Verdade,
foi retirado e aprovado no fim de uma sessão à noite, em regime de urgência
urgentíssima, o que limitou ainda mais a possibilidade de se apresentarem
emendas. O governo fez um rolo compressor para que o projeto fosse apresentado
nesses termos. E negociaram com a oposição algumas emendas. Mas recusaram
emendas de avanço.
CC: Qual o interesse do governo em aprovar a Comissão dessa
forma?
LE: O que ouvimos é que ou se aprovava a proposta nos termos
em que ela estava ou haveria dificuldades em razão da pressão da área militar.
E que os termos teriam sido negociados pelo então ministro Nelson Jobim com a
área militar. Assim, essa proposta que acabou apresentada pelo Lula foi para
diluir a luta.
CC: Depois não houve só uma ação da direita, mas o próprio
governo articulou contra o seu projeto…
LE: Sem dúvida. A defesa que os representantes do governo
fizeram, na companhia, inclusive, de parlamentares ditos de esquerda,
comunistas, alguns que até foram vítimas também… Olha, é inexplicável. Mas o
governo baixou o rolo compressor nesse caso também. E outra coisa: conseguimos
aprovar requerimentos da Comissão de Direitos Humanos da Câmara para fazer duas
audiências públicas, uma sobre a Comissão da Verdade e a sentença da OEA e
outra sobre o caso do Araguaia. E convidamos os ministros dos Direitos Humanos
(Maria do Rosário), da Justiça (José Eduardo Cardozo) e das Relações Exteriores
(Antonio Patriota). Eles absolutamente não compareceram. É muito frustrante.
Acho que é simplesmente para se encerrar a discussão, para dar uma resposta
meio enviesada à Corte da OEA. Agora, se a pressão crescer, pode ser que a
comissão sirva para alguma coisa.
CC: Da forma como está, a Comissão da Verdade não corre o
risco de enterrar a história, ao contrário de atender à decisão da OEA?
LE: Sim. O objetivo expresso no texto do projeto é resgatar
a memória para ver a verdade histórica e fazer a reconciliação nacional. Sem
tocar em justiça. É incrível, pois todos os países que sofreram ditaduras
tiveram comissões da verdade com a perspectiva de fazer justiça: Argentina, Uruguai,
África, Alemanha. A nossa preocupação é exatamente essa. A Comissão, tão
cercada de cuidados para se enxergar a verdade por inteiro, pode ser pior que
nada… Não dá para identificar responsáveis de crimes e não levá-los à Justiça.
Temo que esse arremedo de -Comissão da Verdade, com as meias-verdades que,
eventualmente, possam ser apuradas, acabe com a causa e o ânimo das pessoas.
Têm familiares que ainda vivem sob a expectativa de informações sobre aqueles
que se envolveram -naquele processo. Há o caso do Fernando Santa Cruz, por
exemplo, cuja mãe, dona Elzita Santa Cruz, de 97 anos, ainda espera. Muitos
filhos dela sofreram prisões, torturas, mas o Fernando desapareceu no Rio de
Janeiro e até hoje não há nenhum sinal dele. E a mãe, tão velhinha, quase 100
anos, mora na mesma casa em Pernambuco, e não concorda em sair de lá, embora a
casa tenha muitas escadas que lhe prejudicam a mobilidade, porque ela acha que
precisa ficar lá porque, se o filho aparecer, saberá onde ela está. Ela não
permite, por exemplo, a mudança o número do seu telefone, porque todas as vezes
que ele toca, o coraçãozinho dela palpita, pensando que é o filho. É uma
tortura. E assim há centenas de casos de pessoas que continuam com suas feridas
abertas, querendo saber onde estão as ossadas. Ora, ao menos uma satisfação é
devida. Pior que a morte é o desaparecimento. E não há essa perspectiva de se
chegar à verdade. Acho muito duro e injusto.
CC: Muitos são contra, acham que é preciso enterrar o
passado. O que dizer a eles?
LE: Os que são contra apurar a verdade e fazer justiça
alegam que também os opositores da ditadura cometeram crimes. Só que, nesse
caso, eles pagaram: com condenações, processos, prisões, torturas, punições
severas pela Lei de Segurança Nacional. Não é verdade que os dois lados tiveram
o mesmo tratamento. Só os que cometeram crimes de lesa-humanidade, crimes de
tortura, de desaparecimentos forçados, de mortes, em nome do Estado, estão
impunes até hoje. Essa verdade que vai chegar por meio dessa comissão, se é que
se chegará a alguma, vai ser para quê? Só para a memória? Olha, é preciso que
seja mais até para o Brasil concluir sua democratização. Porque, enquanto não
se virar essa página, passar aquele período a limpo, a redemocratização ficará
incompleta.
CC: Uma vez a senhora disse que a ditadura militar caiu de
podre e não por uma resistência. Logo não houve uma ruptura com o regime que
desse início à democracia…
LE: Hoje, os que patrocinaram a ditadura ainda estão no
poder. Ainda são as mesmas forças. É só olhar quem está no Congresso, nas
instituições políticas.
CC: Há ainda algum caminho para que seu projeto possa chegar
ao plenário?
LE: Ele deveria ter sido distribuído para a Comissão de
Justiça e Cidadania, mas a Comissão de Relações Exteriores e Segurança Nacional
requereu que a matéria fosse para aquela comissão. Já havia uma clara intenção.
Agora vai para decisão da Comissão de Justiça e Cidadania. Não vamos deixar de
lutar, não. Se for aprovada na CCJ, vai para o Plenário da Câmara. Se não,
morre.
CC: Na sua avaliação, haverá ainda outros mecanismos
possíveis para que o Brasil possa realmente conhecer suas verdades?
LE: Acho muito difícil. O tempo passa, os mais diretamente
interessados vão morrendo. O ânimo de luta se arrefece, a memória se distancia,
as novas gerações não viveram aquilo e no Brasil não há uma cultura de se
preservar a memória e de se levar os jovens a conhecerem a história. É só um repetido:
“Vamos esquecer, para quê revanche…”.
CC: O que o Brasil dirá à OEA até dezembro, quando vence o
prazo para a sentença?
LE: O Brasil tem responsabilidades no plano mundial sobre
sua posição a respeito dessas coisas. Integra a OEA e é signatário dos direitos
humanos. Fica muito mal politicamente. O que não sabemos é se a Corte se
satisfará apenas com essas providências, mas, mesmo que sim, certamente os
autores da ação vão querer protestar. A gente continuará lutando porque essa
causa é perene. Ela serve para evitar outros crimes como aqueles. Não é uma
coisa menor. Não é “revanche” ou “para que isso, se faz tanto tempo”. Não é
assim. A tortura no Brasil hoje é uma rotina nas cadeias, nos distritos
policiais. A reação ainda é “direitos humanos para bandidos não” porque não se
preserva a memória. É preciso mostrar o que aconteceu para conseguirmos
preservar a democracia.
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