segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Luiza Erundina dá uma aula aos que querem ver o passado enterrado


Os que cometeram crimes de lesa-humanidade, crimes de tortura, de desaparecimentos forçados, de mortes, em nome do Estado, estão impunes até hoje. Desenterrar o passado, portanto, lhes causa medo


 Elzita Santa Cruz, 97 anos, até hoje espera
reencontrar seu filho desaparecido na ditadura
A pernambucana Elzita Santa Cruz (foto ao lado), de 97 anos, não muda de casa nem de telefone porque acredita  que a qualquer momento chegará uma notícia sobre o filho Fernando, desaparecido aos 25 anos, na ditadura militar. Prêmio Nacional de Direitos Humanos da Presidência da República por causa de sua luta, Elzita declarou apoio eleitoral à presidenta Dilma Rousseff em 2010. Na época, escreveu à candidata que Lula avançou pouco, mas tinha a “certeza” de que ela, eleita, não pouparia esforços para descobrir o paradeiro dos desaparecidos políticos do País.

A paraibana Luiza Erundina, de 77 anos, deputada federal pelo PSB, é uma das mais firmes referências nacionais na luta pela redemocratização do Brasil. Mas embarga a voz quando lembra de dona Elzita. Erundina está convencida de que o governo Dilma não dará conta da expectativa da amiga pernambucana. “Temo que esse arremedo de Comissão da Verdade e as meias verdades, que ela eventualmente possa apurar terminem acabando com a causa e o ânimo das pessoas.” As pessoas vão morrendo e as memórias, quando não preservadas, se apagam.



Erundina conta que se entristece porque toda a luta das donas Elzitas não foi suficiente para que o Brasil criasse mecanismos que impeçam essa história de se repetir, seja como farsa, seja como tragédia. Nem de fazer realmente sua democratização. “Aqueles que patocinaram a ditadura ainda estão no poder.”

Confira a excelente entrevista concedida a revista CartaCapital:


CC: O Brasil terá uma Comissão da Verdade ou da Meia Verdade?

Luiza Erundina: Se o projeto aprovado na Câmara se mantiver nos mesmos termos, não há perspectivas de um resultado concreto ou justo em relação aos crimes e aos responsáveis por eles na ditadura. É insuficiente e inadequado. Por exemplo, o prazo das investigações, de 1946 a 1988, é muito amplo, pega desde a ditadura Vargas. E para apenas sete integrantes investigarem em dois anos. Os membros são escolhidos pela presidenta, sem nenhum mecanismo de consulta. A comissão não tem autonomia orçamentária, é totalmente subordinada à Casa Civil. Prevê a possibilidade de militares integrarem a comissão. E não se conseguiu mudar a interpretação da Lei da Anistia. Então não será feita Justiça.

CC: E há a condenação da Corte Interamericana…

LE: Sim. Em 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA, no julgamento do caso da Guerrilha do Araguaia, condenou o Brasil a uma série de medidas de investigação, identificação dos responsáveis e da memória e da verdade sobre os crimes e exigiu, entre outras coisas, que a Lei da Anistia tenha outra interpretação. Na interpretação da OEA, a Lei da Anistia, de 1979, afetou o dever do Estado de investigar e punir. Então, a Ordem dos Advogados do Brasil entrou com uma ação no STF, requerendo um parecer nos termos exigidos pela OEA. E o STF decidiu, no fim de 2010, pela manutenção da interpretação atual.

Deputada luta pela aprovação de uma Comissão justa

CC: A senhora tem um projeto na Câmara para mudar isso, não?

LE: Sim, porque, como a lei atual está, mesmo que essa Comissão da Verdade venha a descobrir provas de assassinatos, os criminosos ficarão impunes, por causa da interpretação do STF. E o projeto de lei do governo Lula, apresentado em maio de 2010, para criar a Comissão da Verdade, foi retirado e aprovado no fim de uma sessão à noite, em regime de urgência urgentíssima, o que limitou ainda mais a possibilidade de se apresentarem emendas. O governo fez um rolo compressor para que o projeto fosse apresentado nesses termos. E negociaram com a oposição algumas emendas. Mas recusaram emendas de avanço.

CC: Qual o interesse do governo em aprovar a Comissão dessa forma?

LE: O que ouvimos é que ou se aprovava a proposta nos termos em que ela estava ou haveria dificuldades em razão da pressão da área militar. E que os termos teriam sido negociados pelo então ministro Nelson Jobim com a área militar. Assim, essa proposta que acabou apresentada pelo Lula foi para diluir a luta.

CC: Depois não houve só uma ação da direita, mas o próprio governo articulou contra o seu projeto…

LE: Sem dúvida. A defesa que os representantes do governo fizeram, na companhia, inclusive, de parlamentares ditos de esquerda, comunistas, alguns que até foram vítimas também… Olha, é inexplicável. Mas o governo baixou o rolo compressor nesse caso também. E outra coisa: conseguimos aprovar requerimentos da Comissão de Direitos Humanos da Câmara para fazer duas audiências públicas, uma sobre a Comissão da Verdade e a sentença da OEA e outra sobre o caso do Araguaia. E convidamos os ministros dos Direitos Humanos (Maria do Rosário), da Justiça (José Eduardo Cardozo) e das Relações Exteriores (Antonio Patriota). Eles absolutamente não compareceram. É muito frustrante. Acho que é simplesmente para se encerrar a discussão, para dar uma resposta meio enviesada à Corte da OEA. Agora, se a pressão crescer, pode ser que a comissão sirva para alguma coisa.

CC: Da forma como está, a Comissão da Verdade não corre o risco de enterrar a história, ao contrário de atender à decisão da OEA?

LE: Sim. O objetivo expresso no texto do projeto é resgatar a memória para ver a verdade histórica e fazer a reconciliação nacional. Sem tocar em justiça. É incrível, pois todos os países que sofreram ditaduras tiveram comissões da verdade com a perspectiva de fazer justiça: Argentina, Uruguai, África, Alemanha. A nossa preocupação é exatamente essa. A Comissão, tão cercada de cuidados para se enxergar a verdade por inteiro, pode ser pior que nada… Não dá para identificar responsáveis de crimes e não levá-los à Justiça. Temo que esse arremedo de -Comissão da Verdade, com as meias-verdades que, eventualmente, possam ser apuradas, acabe com a causa e o ânimo das pessoas. Têm familiares que ainda vivem sob a expectativa de informações sobre aqueles que se envolveram -naquele processo. Há o caso do Fernando Santa Cruz, por exemplo, cuja mãe, dona Elzita Santa Cruz, de 97 anos, ainda espera. Muitos filhos dela sofreram prisões, torturas, mas o Fernando desapareceu no Rio de Janeiro e até hoje não há nenhum sinal dele. E a mãe, tão velhinha, quase 100 anos, mora na mesma casa em Pernambuco, e não concorda em sair de lá, embora a casa tenha muitas escadas que lhe prejudicam a mobilidade, porque ela acha que precisa ficar lá porque, se o filho aparecer, saberá onde ela está. Ela não permite, por exemplo, a mudança o número do seu telefone, porque todas as vezes que ele toca, o coraçãozinho dela palpita, pensando que é o filho. É uma tortura. E assim há centenas de casos de pessoas que continuam com suas feridas abertas, querendo saber onde estão as ossadas. Ora, ao menos uma satisfação é devida. Pior que a morte é o desaparecimento. E não há essa perspectiva de se chegar à verdade. Acho muito duro e injusto.

CC: Muitos são contra, acham que é preciso enterrar o passado. O que dizer a eles?

LE: Os que são contra apurar a verdade e fazer justiça alegam que também os opositores da ditadura cometeram crimes. Só que, nesse caso, eles pagaram: com condenações, processos, prisões, torturas, punições severas pela Lei de Segurança Nacional. Não é verdade que os dois lados tiveram o mesmo tratamento. Só os que cometeram crimes de lesa-humanidade, crimes de tortura, de desaparecimentos forçados, de mortes, em nome do Estado, estão impunes até hoje. Essa verdade que vai chegar por meio dessa comissão, se é que se chegará a alguma, vai ser para quê? Só para a memória? Olha, é preciso que seja mais até para o Brasil concluir sua democratização. Porque, enquanto não se virar essa página, passar aquele período a limpo, a redemocratização ficará incompleta.

CC: Uma vez a senhora disse que a ditadura militar caiu de podre e não por uma resistência. Logo não houve uma ruptura com o regime que desse início à democracia…

LE: Hoje, os que patrocinaram a ditadura ainda estão no poder. Ainda são as mesmas forças. É só olhar quem está no Congresso, nas instituições políticas.

CC: Há ainda algum caminho para que seu projeto possa chegar ao plenário?

LE: Ele deveria ter sido distribuído para a Comissão de Justiça e Cidadania, mas a Comissão de Relações Exteriores e Segurança Nacional requereu que a matéria fosse para aquela comissão. Já havia uma clara intenção. Agora vai para decisão da Comissão de Justiça e Cidadania. Não vamos deixar de lutar, não. Se for aprovada na CCJ, vai para o Plenário da Câmara. Se não, morre.

CC: Na sua avaliação, haverá ainda outros mecanismos possíveis para que o Brasil possa realmente conhecer suas verdades?

LE: Acho muito difícil. O tempo passa, os mais diretamente interessados vão morrendo. O ânimo de luta se arrefece, a memória se distancia, as novas gerações não viveram aquilo e no Brasil não há uma cultura de se preservar a memória e de se levar os jovens a conhecerem a história. É só um repetido: “Vamos esquecer, para quê revanche…”.

CC: O que o Brasil dirá à OEA até dezembro, quando vence o prazo para a sentença?

LE: O Brasil tem responsabilidades no plano mundial sobre sua posição a respeito dessas coisas. Integra a OEA e é signatário dos direitos humanos. Fica muito mal politicamente. O que não sabemos é se a Corte se satisfará apenas com essas providências, mas, mesmo que sim, certamente os autores da ação vão querer protestar. A gente continuará lutando porque essa causa é perene. Ela serve para evitar outros crimes como aqueles. Não é uma coisa menor. Não é “revanche” ou “para que isso, se faz tanto tempo”. Não é assim. A tortura no Brasil hoje é uma rotina nas cadeias, nos distritos policiais. A reação ainda é “direitos humanos para bandidos não” porque não se preserva a memória. É preciso mostrar o que aconteceu para conseguirmos preservar a democracia.

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