Cristovam Buarque
Cristovam Buarque é senador pelo PDT de Brasília, ex-ministro da Educação e ex-reitor da Universidade de Brasília
Nesta semana, o Brasil olhou para o Rio de Janeiro com
orgulho pelo desempenho de seus policiais: alguns deles pelo heroísmo de
recusar propina de traficante; outros pela competência e heroísmo de ocupar a
Rocinha.
Mas, surpreendentemente, o orgulho com o heroísmo de alguns
brasileiros provoca um sentimento de vergonha em relação à estrutura social do
país: afinal, onde estamos errando ao ponto de a honestidade virar gesto
heroico; onde erramos, ao ponto de ser necessário hastear a bandeira do País,
em seu próprio território, como se fosse conquista de território estrangeiro?
Se no Brasil a honestidade fosse adotada como valor
fundamental, a recusa de propina não seria publicada nem seria prova de
heroísmo. Não se pode negar o heroísmo dos policiais, nem a consequente
satisfação e orgulho de cada brasileiro, mas é preciso refletir sobre as causas
desse sentimento de orgulho vir acompanhado do constrangimento.
Se o Brasil tivesse investido de maneira eficiente e
solidária nas políticas públicas em todos os locais, não teria sido necessário
ocupar agora militarmente a Rocinha.
A ocupação militar de hoje, como se tomássemos um território
estrangeiro, decorre de que, ao longo de décadas, tratamos a Rocinha como um
território estrangeiro.
Do ponto de vista dos investimentos públicos, os dados
sociais da Rocinha são tão contrastantes com aqueles da parte rica do Rio de
Janeiro que parecem corresponder a um país diferente.
É isso que pode explicar o hasteamento da bandeira nacional
na Rocinha depois da ocupação, como se a 7ª potência econômica invadisse o
território de outro país em 84º lugar no Índice de Desenvolvimento Humano.
A ideia das UPPs é ocupar militarmente para depois enfrentar
a desigualdade na qualidade dos serviços públicos, transformando uma favela em
bairro. Se no passado a Rocinha tivesse sido tratada como um bairro do Rio,
hoje não seria necessária a ocupação militar para iniciar a transformação da
favela em bairro.
Isso não diminui, até engrandece, os Policiais Militares e
Civis, o Secretário de Segurança, o Governador e Vice-Governador pelas decisões
tomadas e pelo sucesso das operações. Sobretudo o Tenente Disraeli.
Mas o orgulho em relação a cada pessoa envergonha o país
como um todo, pois é prova de que somos uma fábrica de heroísmos isolados, de
pessoas que fazem o certo nadando contra a corrente, tolerando o errado.
Recusar propina deveria ser um ato simples, óbvio; como
deveria ser óbvio investir igualmente na qualidade de vida em todas as regiões.
Mas nos acostumamos com a corrupção e a desigualdade, a exceção é o heroísmo e
a ocupação militar é solução.
A convivência com a corrupção, tanto no comportamento quanto
nas prioridades, obscurece a percepção da fragilidade de nosso orgulho nesta
semana. Perdemos o desejo de orgulho por razões diferentes daquelas dessa
semana. Até não acredita ser possível o orgulho pela abolição do analfabetismo,
pela garantia de escola de qualidade para todos.
Nessa mesma semana em que aplaudimos policiais cariocas por
ocuparem favelas, merecendo nossos aplausos, os chineses ocuparam o espaço
sideral, acoplaram duas naves espaciais criadas por sua própria tecnologia e
produção.
Há décadas, nós estávamos à frente da China e da Índia em
matéria de pesquisas espaciais. Agora, nosso orgulho é com a ocupação do solo
urbano, enquanto eles ocupam o espaço sideral. Em breve o Irã, a Coréia do Sul
e países com tamanhos e potenciais econômicos muito menores que os nossos
estarão na nossa frente.
Da mesma forma que deixamos de perceber o absurdo de nosso
atraso ético, que considera heróis os que não se corrompem, e de fato são
heróis, já deixamos de comparar nosso atraso técnico em relação ao resto do
mundo.
Acostumamo-nos tanto em estarmos atrasados, que comemoramos
com orgulho um gesto pessoal que deveria ser normal e uma pacificação urbana
que já deveríamos ter atingido tempos atrás.
Tudo isso porque não consideramos heróis os dois milhões de
professores, sem salários, sem condições básicas de trabalho, sem ambiente
favorável para o trabalho. O Brasil estará no bom caminho quando honesto não
for herói, for apenas honesto; e quando favela não for favela, for apenas
bairro.
Mas isso só acontecerá quando professor também não for
herói, for apenas professor, bem remunerado, bem preparado e bem dedicado. Se
isso já tivesse acontecido, talvez há muito tempo já tivéssemos passado do
tempo em que ser honesto é um ato heroico, e nem seria necessário comemorar a
ocupação militar de parte do nosso próprio território.
Um comentário:
O cúmulo da corrupção: Ser honesto no Brasil é ato de heroísmo!!!
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